— Com você não é assim?, perguntou-me um amigo. Comigo vivem acontecendo coisas que não sei explicar.

— Grande e estranho é o mundo, respondi-lhe, brincando, ainda sem saber onde ele queria chegar. 

Ele voltou de Chesterton em punho:

— Chesterton achava curioso que sendo o nosso mundo tão estranho, e tão misteriosa a origem de tudo, tenha a gente, no entanto, a capacidade de adaptar-se a essa estranheza. De fato, nós nos sentimos à vontade na terra.

Respondi-lhe que, no meu fraco modo de entender, a vida era uma espécie de uísque com soda; o uísque estimula e entontece, a soda corrige os excessos de devaneio; o uísque é a poesia, a soda é a prosa. Se colocamos no copo muito uísque e pouca soda, sobrevêm, infalíveis, a embriaguez, a náusea, a conta e a ressaca. Caso contrário, tão em uso nos bares hoje em dia pouco uísque e muita soda — a vida fica por demais aguada e perde a graça. Perde um bocado da graça. Meu amigo me agarrou pelo braço, olhou um ponto no céu e perguntou-me:

— Quem tem razão: os sujeitos que me devem dinheiro ou os sujeitos a quem devo?

Por essa eu não esperava, depois daquele preâmbulo, mas ele insistiu:

— Pois isto para mim é um dos mistérios da vida. Esse negócio me perplexiza...

— A ponto de inventar verbos. Mas a quem você deve?

— Devo: a sociedades anônimas desta praça, a estabelecimentos de crédito, ao locador, colégios, dentista, médico, diversos comerciantes, armazéns, padarias, bares e à Fazenda, sem esquecer os amigos que, eventualmente, disfarçam e me passam um cabral.

— E as pessoas que lhe devem?

—  Todos os proprietários de empresas para os quais, permanentemente ou de vez em quando, eu dê serviços. 

— Até aí tudo normal, eu lhe disse.

— Pois é, até aí tudo normal. Dever e ter a receber é próprio do homem. Meu espanto começa no momento em que tenho de pagar ou receber. As duas coisas jamais estão de acordo.

— Por exemplo...

— Ora, se atraso no pagamento da promissória, uma fria e polida carta, cheia de ameaças nas entrelinhas, vem prontamente estimular o meu senso do dever, espicaçando a minha consciência. Se no dia 30 de cada mês, deixo de pagar a cozinheira, ela se abespinha que não tem nem graça. Qualquer atraso nos meus compromissos no Imposto de Renda é seguido de avisos fúnebres em papelotes amarelos. Se não saldo em dia as contas do armazém, o lusitano me suspende o crédito e o cumprimento. Se deixo de pagar no prazo exato a prestação do hi-fi, o correio (que para esse tipo de correspondência tem um serviço impecável) me traz um aviso, onde se vê o desenho de um barômetro a mostrar que a coluna do meu crédito está ameaçada de passar de excelente a regular, de regular a sofrível, de sofrível a péssima... E todos os demais credores desta praça agem com a mesma austeridade.

Ele tomou um ar patético e acrescentou:

— Diante de todas essas manifestações, sinto com toda a lucidez a natureza da sociedade em que vivo, onde dever não é crime, é muito pior.

— Mas até aqui, eu lhe falei de novo, está tudo normal.

— Você vai chegar onde quero. Confesso que sou por temperamento um pagador medíocre, sem grandes entusiasmos. Mas pago, chega na hora eu pago. Dou os meus pulos, às vezes verdadeiros saltos tríplices, mas vou ficando em dia com o banco, o aluguel, o armazém.... Um gerente de banco, quando me nega o empréstimo, nunca me diz que a minha ficha está suja, e sim apenas que o banco não está operando naquele ramo no momento. Pois é, tenho a ficha limpa.

— E eu não duvido disso.

— Agora, penso no seguinte: que as minhas tibiezas como devedor sejam repelidas pela praça com vigorosa energia e cara feia, não é coisa que me espante. Embora às vezes me choque. O que me absurdiza (outro verbo inventado) é a experiência contrária: como credor dos outros, ninguém me leva a sério. Eles deixam de me pagar por aí por motivos fúteis ou sem motivo nenhum. Recusam o dinheiro que mereço e de que preciso, com o mais encantador dos sorrisos. Você está me entendendo? O mistério é exatamente este: a sociedade é feroz quando cobra e é de uma leviandade fabulosa quando tem de pagar. Com que naturalidade, com que graça, com que candura, vão todos adiando o momento de fazer contas comigo. Ah, e tem uma coisa, se tento insistir, se procuro fazer valer os meus direitos, eles se ofendem, ficam magoados, ressentidos.... Se insisto um pouco mais, o meu devedor se queixa de incompreensão, explica-me a situação da firma, fala em retenção do crédito, apela para os meus sentimentos humanos com o mais doce olhar. Resultado: quem acaba triste (e sem dinheirinho no bolso) sou eu. Quem acaba compreendendo a situação da firma sou eu. É ou não é um mistério?

paulo-mendes-campos
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