Fonte: Caderno B, coluna "O homem e a fábula", Jornal do Brasil, de 22/09/1961.

A garota está em crise com o namorado e escreveu uma carta para ele na esperança de fazer as coisas voltarem a ser como antes. 

Ele me deixou ler a carta e fiquei impressionado com o estilo dela. Primeiro senti admiração; depois, inveja. Pensei no meu drama pessoal, que é talvez o drama de todo escritor em toda parte, e recordei que desde menino estou tentando aprender a escrever da maneira como aquela moça de 20 anos, um pouquinho burra, escreve numa simples carta ao seu namorado. Tinha qualquer coisa a dizer, e o disse da maneira mais clara possível. Os movimentos do seu coração, enquanto pensava nos acontecimentos relacionados com sua crise sentimental, refletiam-se no texto. Uma hora era irônica, outra hora ficava zangada, depois terna, depois subitamente amadurecida como se compreendesse tudo a respeito da vida: e as frases registrando essas mudanças de ânimo. 

Pensei nas minhas pobres, sofridas crônicas; nos meus contos, nos meus artigos mais pretensiosos que foram publicados no Suplemento Literário do JB. Uma simples garota do Arpoador, irritada pelo procedimento do namorado, condenava toda a minha literatura ao anonimato.

Nesse dia bebi um pouco mais da conta. Não confessei a ninguém a razão de minha amargura, porém, no meu íntimo pensava na carta. Tenho sido traído por muitas senhoras, e tenho traído algumas sem grande sofrimento. Porém, a literatura sempre me pareceu fiel, ou sempre esperei fidelidade dela. E de repente, romancista frustrado, era preciso, por honestidade, reconhecer também o fracasso de minhas (assim chamadas) produções menores. Mudaria de profissão? Trairia agora a minha vocação, depois de trair e ser traído na vida civil? Ficaria amargo, cínico, ou apenas indiferente? Tais perguntas me oprimiam o crânio; mas tudo em silêncio, sem ninguém ver ou sequer imaginar.

Marcel Proust, no fim da vida, ameaçado pela doença, confessou a um amigo que o pior não era isso. Muito pior era que ele, tendo que iniciar sua obra naquelas condições lastimáveis, fora obrigado a reconhecer antes de mais nada que não sabia nada a respeito do seu ofício. E o nosso querido Henry Miller escreve exclusivamente sobre os longos anos em que não conseguia escrever uma única linha. Isto sempre me impressionou e muitas vezes me amedrontou: como ousara eu abraçar uma carreira na qual não estão seguros nem mesmo os maiores mestres? Além disso, um ofício que ultimamente faz a glória dos diletantes e que se revela em suas formigantes possibilidades numa carta escrita sem atenção por uma garota que brigou com o namorado. Pensei: “Tudo indica que vou acabar entrando pelo cano”, mas isso não chegou a ser um consolo.

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