Publicada, também, no Jornal do Brasil, caderno Ideias, de 21/01/1990 e, posteriormente, no livro O amor acaba, Companhia das Letras, 2013, pp. 253-255.
Não amei com suficiência o espaço e a cor.
Não acredito nos relógios, mas fui
redator. Não posso beber tanto quanto
mereço, pelo fígado e pelo preço.
Ilmo. sr. Diretor do Imposto de Renda:
antes de tudo devo declarar que já estou (parceladamente)
[à venda.
Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também
[precisa de boa parte do meu dinheirinho.
Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.
Murchei em colégio interno durante seis anos.
Não cheguei ao fim de nada, a não ser de desenganos.
Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.
Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pagador de operário.
Já estive (sem diagnóstico) bem doente.
Fui acabando confuso e autocomplacente.
Deixei o futebol por causa do joelho.
Viver foi virando dever e fui entrando no vermelho.
No Rio (que eu amava), o saldo devedor
já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.
Não posso beber tanto quanto mereço.
Pela fadiga do fígado e a contusão do preço.
Sou órfão de mãe excelente.
Outras doces amigas morreram de repente.
Não sei cantar. Não sei dançar.
A morte há de me dar o que fazer até chegar.
Uma vez quis viver em Paris até o fim.
Mas não sei grego nem latim.
Acho que devia ter estudado anatomia patológica.
Ou pelo menos anatomia filológica.
Escrevo aos trancos e sem querer.
Há contudo, orgulhos humilhantes no meu ser.
Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?
Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.
Minha cosmovisão é míope, baça, impura.
Mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.
Não bebi os vinhos crespos que desejara.
Não me deitei nos sossegos que acalentara.
Sou um narciso malcontente da minha imagem.
Jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.
Não acredito nos relógios... the pale cast of thought...
Sou o que não sou (all that I am I am not).
Podia talvez ter sido um bom corredor de distância:
correr até morrer era a euforia da minha infância.
O medo do inferno retorceu as raízes gregas do meu
[psiquismo.
Só vi que as mãos prolongam a cabeça quando já me
[perdera no egotismo.
Não creio, contudo, em my self.
Nem creio que possa revelar-me em other self.
Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e
[a divina medida.
Sou o próprio síndico da minha massa falida.
Não amei com suficiência o espaço e a cor.
Comi muita terra antes de abrir-me à flor.
Gosto dos peixes da Noruega; do caviar russo; das uvas de
[outra terra.
Meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.
Fatigante é o oficio para quem oscila entre ferir e remir.
A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.
A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num
[instante.
Decerto fui crucificado por ter amado mal me
[semelhante.
Algum deus em mim persiste.
Não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que
[existe.
Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é
[lua cheia.
Persistira talvez também, no rumor da tormenta, algum
[canto de sereia.
Deixei de subir ao que me faz falta, não por virtude.
Meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.
Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna
[de Platão.
Vivo num mundo de mentiras captadas pela minha
[televisão
Jamais compreendi os estatutos da mente.
O mundo não é divertido, afortunadamente.
E mesmo o desengano
talvez seja um engano.