Publicada nos livros Homenzinho na ventania, Editora do Autor, 1962 e O amor acaba, Companhia das Letras, 2013.
Bar é um objeto que se gasta como camisa, isto é, depois de certo tempo de uso é sempre necessário comprar uma camisa nova e mudar de bar. É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado. O homem que toma o bar errado pode gerar sérios aborrecimentos ou ser a vítima deles.
Não escrevo este artigo no bar. Não entendo pessoas que bebem para escrever. Georges Bernanos escrevia em bares com o risco de passar por bêbedo, coisa que talvez tivesse sido (a afirmação é do próprio escritor católico) se as leis alfandegárias não taxassem tão alto os álcoois consoladores. A bebida consola; o homem bebe; logo, o homem precisa ser consolado. A dramaticidade fundamental do destino é o penhor dos fabricantes do veneno. Porque o álcool é um veneno mortal. Um veneno mortal que consola e... degrada o homem. Mas outro escritor católico (teve uma crise de irritação quando chegou a Nova Iorque durante a famigerada lei seca), o gordo, sutil e sedento G. K. Chesterton, nega que o álcool degrade o homem: o homem degrada o álcool.
Chesterton foi um louco que perdeu tudo, menos a razão; é claro, por isto mesmo, que a criatura humana é o princípio da degradação de todas as coisas sobre a Terra. O álcool é inocente. Só um típico Alcoólico Anônimo seria incapaz de entender a inocência do álcool e a inescrutável malícia dos homens.
Depois de dois escritores, cito agora um falecido artista de cinema, Humphrey Bogart, que dizia: “Todo homem está sempre duas doses abaixo do normal. That’s the question. Na verdade, não é bem isso: bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de um a zero, dois a zero, três a zero... Bebe-se na esperança de igualar o marcador. Uma ilusão, sem dúvida, mas toda la vida es sueño y los sueños sueños son. Calderón de la Barca, se bebia, era escondido; saiba, portanto, leitor, que a sentença foi adulterada por mim: “Aún en sueños — no se pierde el beber bien”.
Uma das exclamações mais doces (Luís de Góngora y Argote) da poesia espanhola é esta:
Oh bienaventurado
albergue a cualquier hora!
Um dos aforismos pungentes (Baudelaire) da literatura é este: “É preciso estar sempre bêbedo de vinho, de poesia, de religião”.
Uma expressão popular: beber para afogar as mágoas.
Bernanos, Chesterton, Humphrey Bogart, o falso Calderón de la Barca, Gongora e o povo estão perfeitamente certos: o homem bebe para disfarçar a humilhação terrestre; para ser consolado; para driblar a si mesmo; o homem bebe como o poeta escreve seus versos, o compositor faz uma sonata, o místico sai arrebatado pela janela do claustro, a adolescente adora cinema, o fiel se confessa, o neurótico busca o analista. Quem foge de si mesmo se encontra; quem procura encontrar-se se afasta de si mesmo. Não é paradoxo, é o imbricamento da natureza humana. E esta é uma espiral inflacionária cuja moeda, em desvalorização permanente, é a nossa precária percepção da realidade. Somos inflacionados pelo nosso próprio vazio: a reação nervosa da embriaguez parece encher-nos ou pelo menos atenuar a presença do espírito desesperado dentro do corpo perfeitamente disposto a possuir os bens terrestres e gozá-los. Espírito e corpo não se entendem: o primeiro conhece exaustivamente a morte, enquanto o segundo é imortal, enquanto vive. Daí essa tocata e fuga a repetir-se indefinidamente dentro de cada ser humano, este desequilíbrio que nos leva ao bar, à igreja, ao consultório do analista, às alcovas sexuais, à arte, à ciência, à ambição de mando e dinheiro, a tudo. As fugas e fantasias da natureza humana são tantas, e tão arraigadas, que se confundem com a própria natureza humana. Não seria possível definir o homem como um animal que nasce, alimenta-se, pensa, reproduz e morre; o que interessa no homem é o que sobra; o fundamental nele é o supérfluo. Uma jovem atirou-se sem explicação dum décimo andar, um cientista experimentou em si mesmo o vírus duma doença mortal, um artista passa vários anos de fome e incompreensão para realizar uma obra, os tranquilizantes são vendidos aos milhões, multidões acreditam na santidade duma menina, cresce o número de doentes mentais, o alcoolismo é um mal que se generaliza — estas são as manchetes que interessam à psicologia do indivíduo e da coletividade. Todos estes fatos, superficialmente plurais, possuem na base a singularidade da tristeza humana. É preciso beber. A natureza deu-nos a embriaguez natural do sono. Oito horas de sono não bastam. É preciso estar bêbedo — de vinho, poesia, religião. É preciso estar bêbedo de todas as mentiras vitais (a expressão é de Ibsen): de poder, de luxo, de luxúria, de bondade, de satanismo (o doutor Relling para consolar um pobre diabo inventou para ele uma personalidade diabólica), de idealismo, de Deus, de violência, de humildade, de loucura, de qualquer coisa. O álcool é tão-só a modalidade primária e comum da embriaguez. O bar é a primeira instância da causa do homem. O uísque (cachaça) é apenas uma das formas vulgares de todos os ritos milenares de encantamento.
O que comiam os centauros? O que transformava os homens em deuses? Que se comia durante as cerimônias dos Mistérios na Grécia? Provavelmente um cogumelo chamado amanita muscaria, responde o sábio e divertido Robert Graves. A ambrosia das festas dionisíacas não devia ser outra coisa, amanita muscaria, incomparavelmente superior aos nossos melhores vinhos e aguardentes. O cogumelo leva-nos à morada de Deus — é o testemunho de uma médica e um banqueiro que o experimentaram várias vezes. Acredita Robert Graves que Sansão devia sua força aos cogumelos. A Sulamita refere-se aos cogumelos no Cântico dos Cânticos. Os indígenas mexicanos o usavam em suas festas rituais (culto ainda existente na província de Oaxaca). Portanto:
A embriaguez é religiosa, e o altar das religiões antigas inventou de certo modo a mesa do bar. Aí, o homem punha-se em comunicação com o espírito divino, ligava céu e terra, transcendia-se.
O homem entra no bar para transcender-se — eis a miserável verdade.
Entrei em muitos, bebo alguma coisa desde a minha adolescência, conheço bares em Belo Horizonte, Porto Alegre, Buenos Aires, Florianópolis, São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Manaus, Brasília, João Pessoa, Petrópolis, Belém, Nova Iorque, Lisboa, Vigo, Londres, Stratford-on-Avon, Oxford, Paris, Grenoble, Gênova, Pisa, Arezzo, Florença, San Gemignane, Volterra, Spezia, Roma, Nápoles, Paestum, Reggio di Calabria, Messina, Catania, Siracusa, Licata, Agrigento, Marsala, Trapani, Palermo, Taormina, Veneza, Hamburgo, Berlim (Ocidental e Oriental), Heidelberg, Dusseldorf, Colônia, Munique, Goettingen, Francfort, Bonn, Varsóvia, Estocolmo, Leningrado, Moscou, Surrumi, Irkutsk, Pequim, Múquiden, Xangai, Santa Luzia e Sabará.
Em 1954, viajando pela Alemanha de automóvel, cheguei, pouco depois da meia-noite, à cidade universitária do Goettingen. No Brasil, uma cidade cheia de estudantes costuma tumultuar-se pela madrugada. Mas Goettingen àquela hora entregava-se a um repouso unânime. Sem sono, reservei um quarto no hotel, perguntando ao empregado onde poderia beber qualquer coisa.
— Ah, senhor — respondeu entre sentido e orgulhoso o alemão — Goettingen é uma cidade universitária, não existe nada aberto a esta hora.
— O senhor está completamente enganado — retruquei-lhe.
Ele se riu bondosamente de mim: tinha mais de 60 anos, nascera em Goettingen, conhecia todas as ruas da cidade, todos os bares, seria humanamente impossível encontrar qualquer venda aberta depois de meia-noite.
— O senhor está completamente enganado — insistia eu.
Moeller, outro alemão, que viajava comigo, reforçou a opinião do empregado do hotel, e começou a dissertar impertinentemente sobre as diferenças entre o Brasil e a Alemanha. Eu estava parecendo bobo — disse ele — não querendo aceitar esta germânica verdade: em Goettingen não havia um único bar aberto depois de meia-noite. A esta altura manifestei-lhes um princípio universal pelo qual sempre me guiei:
— Pois fiquem vocês sabendo que em todas cidades, todas as vilas e povoados do mundo há pelo menos duas pessoas que continuam a beber depois de meia-noite; aqui em Goettingen há pelo menos duas bebendo neste momento; vou encontrá-las.
Darwin Brandão, o terceiro homem nesta viagem, não me deixa mentir. Meio cético a respeito do meu princípio, mas solidário com o amigo, resolveu acompanhar-me, apesar do sarcasmo dissuasório de Moeller. Saímos para a noite morta de Goettingen, e vimos um gato, tão silencioso quanto os seus conterrâneos, ganhar às pressas o beiral dum telhado secular. Fomos andando pelas ruas paralisadas, eu tranquilo, e Darwin me espiando de banda. No fim duma rua comprida e oblíqua, vi um cubo iluminado, mais parecido com um anúncio de barbearia, e afirmei:
“É ali”. Nas faces visíveis do cubo estará escrito: Weinclub. Ao fim da passagem lateral, por onde entramos, demos com a porta fechada. Batemos em vão, já íamos embora, desapontados, quando notei no corredor uma escada circular para o porão, cavada na pedra. No primeiro patamar, ouvimos música. Tomei um ar superior de vidente e desci o segundo lance. Empurrada a grossa porta de carvalho (o carvalho é mera suposição), recebi uma salutar lufada de música, de tabaco, de gente, de aromas etílicos. Foi como se eu reconquistasse o paraíso. O Weinclub dançava e bebia animadamente, repleto de jovens universitários e lindas universitárias de bochechas coradas e riso amorável. Não havia uma única mesa vaga, mas três segundos depois eu estava a beber um magnífico branco do Reno e a explicar para os estudantes, que nos acolheram com simpatia, o princípio universal que rege a vida noturna. E eles, os mais talentosos matemáticos do mundo, futuros inventores de balísticas e outros inteligentíssimos engenhos mortíferos, acataram o meu pacífico princípio como um axioma luminoso. Foi um dos bares mais consoladores de minha temporada sobre a Terra.
Um bar legal precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons fregueses e boa bebida. Isto é raríssimo de acontecer. Quando o garçom é uma flor de sujeito, o dono do bar costuma ser uma besta; se os fregueses são alcoólicos esclarecidos, o ambiente às vezes é quente e abafado; vai ver um excelente e confortável bar refrigerado, e boa percentagem de uísque é fabricada no Engenho de Dentro. Para dizer toda a verdade, o bar perfeito não existe.
Barmen and jockeys are the only people who are polite any more, doutrinou um homem que consome álcool em quantidades industriais, o romancista Ernest Hemingway. O barman, de fato, é um dos segredos do bar. Cada freguês deve sentir a ilusão de que o barman tem uma predileção especial por ele, e em nome disso será capaz de resolver qualquer problema. O incompreensível é que resolvem mesmo. O homem que chega a uma grande metrópole desconhecida é como um avião voando em solidão por dentro dum espesso nevoeiro. Mas, se este homem pertence à comunidade internacional dos frequentadores de bar, cada barman é uma torre com a qual ele poderá entrar em contato a fim de orientar-se. Os únicos estranhos aos quais eu falo sem timidez, com perfeita familiaridade, são os barmens e estes igualmente reconhecem logo em mim o freguês escolado, curtido em todos os amargos, navegador de longo curso.
Todo frequentador de bar tem o direito eventual de embriagar-se inconvenientemente uma vez por outra. Quem vende bebida deve ser inchado quando exige de seus fregueses um comportamento de casa de chá. Aclarados neste ponto, podemos afirmar que o maior inimigo do bar e do alcoolismo é o mau bebedor contumaz, o bebedor que bebe anos a fio e não aprende a beber, o bebedor diariamente chato, incapaz de entender o tácito acordo de amabilidade e contenção que existe entre todos os bons bebedores do mundo. Eu os conheço todos e os abomino. Conheço toda a imensa variedade da espécie (sentimentalóides, untuosos, agressivos, prolixos, confidenciais, pedantes, questionadores, inoportunos, monocórdios, rabugentos, ressentidos, etc., etc.). Ah, se um dia eu pendurar o meu copo numa prateleira, e passar a beber em casa, podereis estar certos, contemporâneos, que foram os maus bebedores que me levaram a este extremo!
Não defendo o alcoolismo, respeitável sr. Alcoólico Anônimo. Queira entender-me com um pouco mais de sutileza, se me faz o favor. Modestamente embora, falando do alto duma tribuna para uma plateia vazia, defendo é o homem. O uísque não me interessa, o que me interessa é a criatura humana, esta pobre e arrogante criatura humana, já confrangida por um destino obscuro, arrumada odiosamente numa sociedade dividida em castas, uma sociedade sanguessuga, uma sociedade engenhosamente arquitetada para triturar as classes de baixo a fim de transformar a dolorosa matéria-prima em petróleo, aço, eletricidade, veículos, aparelhos domésticos, tecidos, alimentos. Segue-se a segunda fase do processo industrial: correias de transmissão levam estes bens terrestres ao alto forno, que os transforma miraculosamente em palácios, iates, cavalos de corrida, joias, amantes de luxo, em todas as formas de prazer e domínio sobre a vida. Mas os ricos também bebem, e quanto! Bebem às vezes por má consciência, outras por má educação, bebem porque todos os bens terrestres são fantasias que se desfazem de repente ao hálito da morte. Pois o que advogo no meu desespero-dialético é a melhor distribuição das fantasias terrestres. Será a única maneira eficiente de reduzir o alcoolismo. A máquina social cria sobre o indivíduo uma inumerável série de compressões, que o desequilibram e infelicitam. O alcoolismo é uma das variadíssimas consequências desse extraordinário mal-estar coletivo. Transpondo a porta do bar, o homem age com toda a pureza e inocência, buscando fugir ao sofrimento, tentando cumprir a sua vocação para o prazer; se encontra no bar um novo mal, a degradação, o desemprego, a debilitação orgânica, a morte prematura, isto é a outra história. A história triste das drinking classes, nome que Oscar Wilde dava aos trabalhadores.