Fonte: O amor acaba: crônicas líricas e existencias, Companhia da Letras, 2013, pp. 279-280. Publicada, originalmente, no Jornal do Brasil, de 11/05/1964, como uma "resposta" à crônica "O amor acaba", de Paulo Mendes Campos.

(Réplica ao belo poema de Paulo Mendes Campos)

E quando começa o amor, Paulo?

Quando você chega. Quando um cálice quebra  o licor se derrama nuns joelhos, o amor pode começar. Quando as linhas do telefone se cruzam e um susto resplandece de lado a lado. Quando ele encontra em si antenas para ver que alguém está usando saltos altos pela primeira vez. Quando sentimos a falta da terceira datilógrafa à esquerda de quem entra, no escritório onde estivemos pela última vez há quatro meses. Quando amanhecemos para uma dourada favorabilidade e há galeras de alabastro na bandeja de prata. Nos olhos da aeromoça, o ouro da fortaleza quando a queda parecia inevitável: é quando o amor já começa imorredouro. Quando a viúva, de volta do cemitério, desata um sorriso pálido que se reflete, paterno, nos olhos do homem que passa. Quando recebemos uma carta de amor anônima e contra toda evidência escolhemos aquela que deveria tê-la escrito. Quando a mulher míope aparece sem os óculos e, sem querer, nossas pálpebras se afilam e tremelicam, solidárias. Quando os jornais publicam a foto do homem que comeu um gato vivo e tudo fazemos para que ela não leia os jornais nesse dia. Quando voltamos de um fim de semana em Petrópolis e numa janela fechada, no outro lado da rua, parece sorrir. Quando encontrares alguém que te viu certa vez num lugar onde não tens o hábito de ir, cuidado porque o amor pode estar começando. Quando na penumbra do cinema um perfil se entrega a quem perdeu o interesse no filme. Quando dois se encontram seguidamente num elevador e às vezes se cumprimentam, às vezes seque se olham, o amor pode ficar apenas nisso, mas já começou. Se tens a impressão de que algo lentamente se inicia; se, contudo, nada fazes para precipitar esse início, deixando que o acaso confirme ou desfaça atua suspeita; e se, uma noite, numa festa, embriagada mais pelos sentimentos contraditórios que lutam em seu coração do que pela quantidade de uísque que se permitiu beber, se ela se põe a dizer coisas incompreensíveis em inglês, então as tuas suspeitas tinham fundamento: ao menos para ela o amor já começou. O amor começa, Poeta, obedecendo à mesma lei que o liquida – lei que reza que dois e dois são cinco e que, de quatro em quatro milhões de anos, uma quantidade dada de fogo se congela em bolas autônomas, que rolarão durante algum tempo ao redor de um eixo proposto por ninguém e para nada.

jose-carlos-oliveira