Imagens de Natal

Um dos mistérios do Natal é caberem nele tantas festas: a religiosa, a familial, a infantil (espécie distinta), a popular e mesmo a agnóstica, dos que não apreendem o divino e, entretanto, o celebram. E todas essas comemorações se processam em dois planos: o Natal exterior e o interior se interpenetram, mas não se confundem. Assistimos à festa nas ruas, nas casas, nas igrejas, participamos dela, mas promovemos em nós uma outra festa, ou tentamos promovê-la, calados, até melancólicos. Será o Natal uma solidão à procura de companhia?

Recordo uma noite de Natal passada no estrangeiro, há cinco ou seis anos. Estávamos reunidos em torno à mesa, comendo e bebendo coisas que é de uso comer e beber em maior quantidade, numa data em que comida e bebida deviam ter tão pouca importância e, contudo, a têm enorme e simbólica. Sentíamo-nos felizes: uma pequena família que reúne suas metades habitualmente separadas tem direito a isso. Havia mesmo a circunstância de que a família aumentara, e não era só um menino ideal que saudávamos, era também outro menino de carne e osso, bochechudo, olhos azuis, dormindo no quarto próximo. A alegria não chegava a ser ruidosa, dado o temperamento geral e a conveniência de não acordar o menino. E seria completa, se algumas lembranças não nos acudissem: pessoas que tinham morrido há muito tempo se apresentavam, docemente incômodas; recordá-las era bom e triste. Pessoas distantes, amigos, até desconhecidos, essa massa anônima que faz parte de nosso existir-em, e que lá longe, no Brasil, estaria vivendo seus diversos natais, enquanto outra massa anônima em volta de nós se entregava aos mesmos ritos sacros e profanos. Estávamos protegidos, solidários, unificados; contudo, estávamos também isolados de inúmeros seres, nessa concha de egoísmo que é a felicidade doméstica.

O telefone interno tocou na copa; da portaria chamavam o dono da casa. Um rapaz italiano chegara do Rio num avião das 23 horas, atrasado, para (de surpresa) passar o Natal com a mãe, moradora no mesmo edifício. A senhora não estava, o rapaz queria entrar e o porteiro, desconhecendo-lhe a identidade, não sabia o que fazer: como ele dissesse que vinha do Brasil, e nossa família era metade brasileira, o homem entendeu que devia consultar-nos.

Manuel (o dono da casa) desceu para conversar com o recém-chegado. Este era um moço simpático e mal escondia a ansiedade pelo desencontro. Ficou decidido que ficaria no hall do edifício, até que a senhora voltasse. Manuel subiu para trazer-lhe um prato, copo e garrafa. Encontrou a família sob o impacto daquele viajante noturno e sem aconchego de Natal; trocou um olhar com a dona da casa e desceu novamente, de mãos vazias. Ia chamar o rapaz para a nossa mesa; se fosse um impostor, paciência. O rapaz subiu, tímido, sem jeito. Ia dar trabalho, perturbar a intimidade.... Reanimou-se ao calor de uns goles, contou-nos coisas, ouviu outras. De vez em quando olhava o pulso. Quanto tempo duraria a espera? Nossa intimidade se rompera, os assuntos tinham de ser mais gerais, mas déramos companhia a um estranho, parecia que o nosso Natal se dourara de um elemento novo. Por outro lado, se a senhora italiana não chegasse, até quando o teríamos conosco, não ficaria meio cacete aquilo?... Se ela não o reconhecesse, havia de ser engraçado. Essas imaginações passaram pela cabeça deste narrador, que logo se envergonhou do meu pensamento; não há Natal perfeito. Às duas da madrugada, o telefone avisou que a senhora havia chegado e esperava o filho lá em baixo. Tempos depois, Manuel estava no Rio e avistou o rapaz na calçada; ia abraçá-lo, efusivo, mas o outro o cumprimentou vagamente e afastou. Esquecera talvez a companhia, ou se lembrava somente do desamparo inicial.

 

P. S. — Tendo lido um destes escritos, em que eu informava que dois mil cruzeiros é quanto custa à Pró Matre, o nascimento de uma criança. Gilberto Bandeira de Melo mandou de Nova Deli um cheque nessa importância, em favor daquela instituição. O donativo já foi entregue. Obrigado, Gilberto (de tão longe, pensar numa grande casa necessitada do Brasil) e desculpe a indiscrição de contá-lo.

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