Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/1982.

João Brandão veio dizer-me que adora sambas-enredo. Ainda não pôde ir às quadras das escolas, onde se ensaia furiosamente, mas leu e absorveu todas as letras divulgadas pelos jornais e até pelas drogarias.

— Como antibióticos contra a inflação? — Perguntei-lhe.

— Como publicidade de produto farmacêutico. Ganhei numa drogaria duas ventarolas, com as letras impressas nas quatro faces. E cada vez mais aprecio o teor literário dos textos, que popularizam a poesia da maneira mais contagiante: pela música.

E João me passou uma ventarola, chamando atenção para o samba-enredo da Beija-Flor: O olho azul da serpente. O título já é poesia. Só um poeta, seja ele um da velha guarda ou Wilson Bombeiro e Carlinhos Bagunça, autores declarados da peça, poderia observar de imediato essa particularidade da serpente: o azul dos olhos. É uma história de bruxaria no reino de Paranambuco e faz referência expressa à literatura de cordel; desfilam Maurício de Nassau, Mestre Vitalino e o rei guerreiro dourado, ao som da “viola vadia de vida boa”. Conclusão: “Caruaru tá contente, o Nordeste tá sorrindo”. Numa boa, apesar dos pesares!

Os Acadêmicos do Salgueiro não fazem por menos, e saem de Anfitrite, Netuno, Cinderela, polvo de prata, passarinho de cristal, rei na carruagem de corcéis alados. Zedi e César Veneno, autores confessos, adentraram o “reino do faz de conta”, que João Brandão não sabe ao certo se é o reino da fantasia ou pseudônimo do país oficial inserido em nosso país concreto, onde os polvos não são prateados e as carruagens rodam a poder de gasolina ou álcool caríssimos.

A preocupação literária acentua-se nos Unidos da Tijuca, ao recordarem Lima Barreto, “figura destacada do romance social”, nestes versos geniais, assinados por Adriano:

Mesmo sendo excelente
escritor,
Inocente,
Barreto não sabia
Que o talento banhado 
pela cor
Não pisava o chão da 
Academia.

A formidável onomatopeia do “Bum, bum paticumbum prugurundum”, no Império Serrano, pede passagem “pros moleques de Debret” e acentua a magia poética destes versos de Beto Sem Braço e Aluísio:

Enfeitei meu coração
De confete e serpentina. 
Minha mente se fez menina 
Num mundo de recordação, 
Abracei a coroa imperial...

Didi e Mestrinho introduzem no vocabulário dos sambas-enredo a palavra euforia (“eu vim descendo a serra cheio de euforia para desfilar”). É assim que a União da Ilha do Governador entrará na competição:

A minha alegria 
Atravessou o mar
E ancorou na passarela. 
Fez um desembarque fascinante 
No maior show da terra.

Caruso e Djalma Branco, pela Unidos de São Carlos, estabelecem interessante jogo de som e sentido, entre renda e rede: “Quem joga a rede pega o peixe e faz a renda”. “Há rede e renda”. “Vou deitar na rede, / vou sonhar os sonhos dela / e trazer muié rendeira / pra rendá na passarela”.

João Brandão pergunta se nossos poetas atuais, da velha à novíssima guarda, os consagrados e os marginais, convidados a fazer letra de samba-enredo, fariam melhor. Apresentariam certamente obras mais caprichadas estilisticamente (isto é, nem todos), mas lhes faltaria essa “qualquer coisa” que individualiza o sambista de carnaval de escola. O gênero não é fácil, as palavras escravizam-se à melodia, que as glorifica ou anula. O poeta de escola tem como norma impositiva a produção de um texto que se espalhe através de grandes massas corais. Não lhe passa pela cuca a intenção de ser lido individualmente, em página de livro ou de revista. É um associado do compositor, quando não constituem os dois um só autor, musicopoeta. Dá à sua humilde, mas poderosa criação um valor de comunhão coletiva que o soneto, mesmo o de Shakespeare, jamais alcançaria. É um poeta social por excelência.

Estas coisas, ditas por João Brandão em momento de entusiasmo, foram subitamente abafadas pelo som violento que vinha do rádio: Bum, bum paticumbum! Prugurundum! O samba-enredo pouco ligava a esses louvores. Conquistava o espaço, metia-se na zona sensível de cada um, bum! bum! afastava qualquer veleidade de raciocínio: paticumbum! abolia a suposta ordem das coisas no mundo e na mente: prugurundum!

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