Cada um tem suas queixas dos governos. A minha principal foi, nesses últimos 40 anos, contra o alvoroço novidadeiro dos favorecedores das rodovias, os quais, mesmo antes de se iniciar no Brasil a produção de automóveis, já punham de lado as ferrovias.

Vi com meus olhos, chorando, arrancarem os trilhos da linha de Petrópolis com sua histórica cremalheira. Vi, metodicamente destruídos, os caminhos de ferro no Estado do Rio, Minas, Ceará.

Começavam manhosamente desativando os ramais, deixando que o mato cobrisse os aterros e aí, lá vai!, arrancavam tudo. Vi fazerem fogueiras com dormentes amontoados à beira dos trilhos mortos. E para onde foram depois os trilhos?

O grande tocador de obras que foi o ministro Andreazza parece que só acreditava em pneu rodando sobre o asfalto. Tanto quanto pôde, espalhou pelo país inteiro a sua frágil malha rodoviária, por sobre a qual navegávamos todos montados em fuscas, caminhões e ônibus, pensando que já éramos quase tão adiantados quanto os Estados Unidos. Trem, desde então, virou transporte ultrapassado, obsoleto.

Contudo, havia (e há ainda), espalhada pelo Brasil, toda uma irmandade de amantes do trem, formada pelos ferroviários — é claro — desde o peão de linha, até os engenheiros da cúpula; e uma comunidade paralela, os meninos do trem, os que nós criamos à beira das velhas ferrovias e cultivamos a saudade do apito noturno da máquina resfolegante cortando o escuro com seu grande olho-holofote; a sineta da partida, condutor anunciando as estações, a paisagem de postes correndo ao lado da janela, os vinte minutos do almoço na estação, meu Deus, é todo um folclore e toda uma vida.

E resistimos. Por mais que nos golpeiem não nos abatemos. Os profissionais continuam trabalhando na sombra, com constância e eficiência. E nós os estimulamos com a nossa solidariedade.

No Ceará, por exemplo, quase como resposta ao rude golpe que foi a extinção dos trens de passageiros, que dor, que ódio! (Porque passageiro não dá lucro!), os companheiros da velha e saudosa RVC (que pode usar outra sigla, mas não perdeu sua identidade nos nossos corações) responderam ao golpe construindo e inaugurando — sabe Deus com que esforço e sacrifício — a grande ponte do Quixeramobim — chamada oficialmente “Variante Ferroviária de Quixeramobim”. É uma ponte ferroviária de 335 metros de extensão, em 12 vãos isostáticos (!), em concreto protendido, extensos encontros e fundações ancoradas na rocha etc., etc.

Foi uma bela, uma consoladora resposta. “Eles” pensam que acabaram conosco, mas são “eles” que se acabam com sua celebrada malha de asfalto praticamente destruída pelas chuvas e pelo abandono. E nós ressuscitamos, com a nossa bela e utilíssima ponte, obra cujo alcance social e econômico as comunidades locais bem avaliam.

Está à frente dessa obra de ressureição o nosso querido amigo e “irmão do trem” Ruy do Ceará, superintendente da RFF em Fortaleza, com a sua maravilhosa equipe técnica. Equipe que não aceita parar nunca e pretende continuar reabrindo ramais, recriando variantes, mantendo viva, atuante e até competitiva a nossa velha estrada de ferro. Há de voltar o tempo em que o trem será de novo a linha-mestra dos transportes — como, aliás, acontece em todo o resto do mundo.

E as locomotivas, cuspindo fogo como dantes, encarnação moderna do dragão das fábulas, hão de varar a noite, despertando as crianças com o seu apito, embalando o sono delas com o trepidar do chão sob o peso do comboio nos trilhos.

E a gente poderá envelhecer consolados, quem sabe até voltando a viajar de trem, naquelas poltronas forradas de linho pardo — comprando banana seca e cestinha de uvas, abraçando os amigos que vieram nos ver na estação!

Não é, Ruy, não é, Jorge, não é, companheiros queridos da nossa confraria de “meninos do trem” do Ceará? E por que não, também, do Brasil, da América, do Mundo!!

rachel-de-queiroz
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