Há mais de 60 anos, nos Estados Unidos, um garoto foi dar uma voltinha na lata de um cozido que seu pai acabava de fazer, queimando irremediavelmente o esôfago, pois o alimento estava excessivamente aquecido. Impossibilitado desde então de alimentar-se pela boca, o menino foi submetido a uma operação no abdômen, passando a nutrir-se por essa via artificial. Escondendo dos companheiros a anormalidade, a criança cresceu, jogou futebol, aprendeu o ofício de bombeiro, fez-se homem, tornou-se pai. Suscetível, jamais permitiu que os cientistas o estudassem, até o ano de 1941, quando consentiu em fazer um trato com dois médicos de um hospital de Nova Iorque: de manhã, serviria de cobaia, à tarde trabalharia como auxiliar de laboratório. Contanto que não revelassem jamais seu sobrenome.
Dois anos depois, os dois médicos publicavam uma obra (incomparável, dizem) sobre a função gástrica do ser humano: abrira-se uma janela para o mistério das nossas entranhas. Não só decisivos pormenores da fisiologia da digestão foram descobertos, mas, igualmente, certas nuanças do comportamento psicossomático foram descortinadas. E psicossomatismo, afinal, é a palavra de ordem da literatura médica de nossos dias. Assim, por exemplo, chegaram os dois pesquisadores à conclusão de que o estômago de Tom “Little” (era seu apelido), quando este se sentia bem, permanecia rosa-pálido e com muitas dobras, tomando no entanto viva coloração vermelha e esticando-se durante estados de cólera.
Tom “Little” morreu há uns três anos, septuagenário, no mesmo hospital onde as experiências prosseguiam. Sua submissão ao interesse científico prestou à Medicina uma série de observações importantes, entre as quais, afirma-se, encontra-se a atual certeza de que o estado de ansiedade constitui a emoção mais nociva ao estômago, nitidamente relacionada à ulceração gástrica.
Quando soube disso, fiz votos para que Virgínia Woolf não tivesse razão, ou pelo menos, que não se descobrisse uma relação entre o tédio e uma outra doença grave qualquer. Pois a grande escritora, com um desencanto pouco feminino, afirmou numa simplicidade cruel que a vida, a minha, a tua, a nossa vida, se restringe a uma sucessão alternada de dois estados de alma: ansiedade e tédio, ansiedade e tédio, ansiedade e tédio...
Não é preciso discutir sobre a validade desse pessimismo, como de nada nos valeria indagar sobre os males possíveis relacionados ao tédio. O valioso, para a ciência, é saber, entre milhões de exemplos, que viajar em lotação e trem da Central pode ocasionar a úlcera; esta pode ainda eclodir de uma existência vitimada de aflições bancárias; esperar mulher amada (vem ou não vem?) é outra coisa que não faz bem ao estômago; a Copa do Mundo em perspectiva deve estar devastando milhões de brasileiros; além de todo um universo de possibilidades, desconfio que uma das mais importantes causas da úlcera é a própria ansiedade da úlcera, isto é, o estado angustioso no qual vivem as pessoas desconfiadas de que sofrem de úlcera.
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Durante muitos anos, notei num poeta, amigo meu, a extraordinária faculdade de aparecer repentinamente nos lugares mais inesperados de Petrópolis, quer eu passasse nesta cidade alguns dias ou duas horas. Vagueando pela Samambaia, procurando (em vão) localizar a casa de algum amigo no Bingen, o poeta sempre surgia, pálido, bengala na mão, cachecol encarnado no pescoço, boina azul-marinho (como um criador de mastins). Reservando ao verso suas virtudes mais secretas, era no bate-papo que esse poeta deixava fluir sua vocação panfletária, destruindo uma dúzia de ideias e duas dúzias de pessoas em poucos minutos.
Mas não criava mastins, criava uma úlcera. Foi no D’Angelo que ouvi a história toda. Durante muitos anos andou o poeta convencido de que a úlcera (dele) era a consequência dos nervos ralados. Meteu-se na área psicanalista, estudou o assunto com paciência de erudito, fez-se analisar com resignação, tentou todos os meios de curar o mal físico pelo tratamento da disposição neurótica.
A perspectiva cirúrgica não o seduzia, mas, uma vez, atormentado por dores agudas, internou-se num hospital, decidido a operar-se. Qual! Pela manhã, quando vinham buscar o poeta para a mesa operatória, este se recusava com violência à imolação, puxando debaixo do travesseiro o argumento de um revólver. Saiu do hospital como entrou, tomando de duzentos a trezentos cruzeiros de sorvete por dia.
Não estou abusando duma conversa íntima, pois o próprio poeta tinha prometido contar em prosa firme as memórias da úlcera que lhe emprestou uma personalidade factícia, bolsos cheios de remédios, cabeça cheia de teorias, nervos cheios de prevenção. Mais tarde, a prosa da úlcera virou um poema que narra a noturna travessia de um avião sobre o Atlântico; uma beleza.
O fim da história é que, levado quase inconsciente para o hospital, o poeta foi procurado na enfermaria pelo cirurgião-chefe: “Pois é, agora nós te pegamos”. O poeta quis dizer que não era frango, mas não teve forças; era. Pois foi operado, recuperado e felicitado.
Mas, Deus do céu, por que todo poeta (todo homem) alimenta um mal secreto? Nem só de úlcera (à guisa de moral) vibra a intensidade nervosa da minha, da tua, da nossa vida.