Na primeira vez que tomei o ácido lisérgico, senti, após três ou quatro horas de experiências intensas, uma extraordinária sensação de alívio, paz, conformidade em minha vida de relação, e misteriosa purificação, como se o lodo de meus pecados houvesse corrido numa torrente de água limpa. Estava ansioso para desfrutar minha liberdade interior, mais que isto, meu sentimento de que, dentro e fora de mim, fora inaugurada qualquer coisa como um bazar de novidades. Disse ao médico que mais tarde eu iria a uma reunião social. O comentário que ele fez me despertou viva comicidade: “Ótimo; vamos ver como reage o Paulo novo diante de uma situação velha”. Até então, as minhas modulações psíquicas, se posso dizer assim, eram serenas e santas; eu sorrira algumas vezes, mas não rira, não vira uma só vez o cômico ou o ridículo. Aquela frase, entretanto, melhor, a condição que ela enunciava, me divertiu infantilmente. Devo apenas dizer que, em outra experiência, tendo regressado à infância, fui acometido de um acesso de riso, inoportuno e imotivado para um adulto.

Na rua, notei apenas uma ligeira insegurança nos meus gestos e uma certa incapacidade de fixar a atenção em um objeto. Olhava para as pessoas sem a inquietação normal da curiosidade humana, mas também com uma aceitação maior do que nunca. Pouco antes, em um daqueles mergulhos no inconsciente, eu aprendera o seguinte: quem perdoa a todos é também perdoado. Ali fora, vendo homens, mulheres, crianças, fisionomias brutas ou delicadas, simpáticas ou hostis, meu sentimento era de um amplo perdão, uma anistia universal concedida por mim, e da qual eu recebia logo o reflexo liberatório. Não havia mais grades dentro de mim; libertara os outros, e os outros tinham me libertado.

Nas próximas horas, pouco a pouco, iria então descobrir um fenômeno psicológico que considero o mais importante de toda a minha experiência. Importante porque não se tratava mais de qualquer alucinação: era um fato que eu podia comprovar com absoluta nitidez.

Durante aquele tempo, encontrei-me com muitas pessoas, conhecidas e desconhecidas, tomei táxis, entrei em bares, fui a um jantar em casa de amigos. Pois bem, ainda dominado pelo sentimento de inocência ou purificação, reparei que as pessoas me tratavam como se soubessem ou adivinhassem de certo modo que eu estava inocente ou purificado. Os outros todos me falavam com invulgar delicadeza. Deslumbrado com a descoberta, procurei elucidá-la da melhor maneira possível, a fim de obter a certeza de que aquilo realmente acontecia, sem qualquer contingente ilusório provocado pela droga. Da observação inicial de que me falavam com rara gentileza, cheguei logo a uma outra verificação: antes de tudo, era eu mesmo quem falava aos outros sem aspereza, sem qualquer sombra de ressentimento ou desconfiança. E os outros me respondiam com a mesma afabilidade. Fiz várias experiências a fim de sitiar bem a descoberta. Os outros, sobretudo as pessoas mais modestas culturalmente, mais instintivas, respondiam-me com uma docilidade surpreendente, mais ou menos assim como o hipnotizado responde ao hipnotizador. Motoristas de táxi, de cenho rude e feroz como os mais ferozes e rudes deste Rio de Janeiro, amansavam-se miraculosamente diante de minhas ordens, chegavam a ficar vagamente roucos e tímidos quando me respondiam. A fim de testar melhor a observação, passei a falar-lhes sem os suportes corteses da linguagem, sem dizer “senhor”, “por obséquio”, etc. Vire à direita, siga em frente, encoste do outro lado... As respostas me encantavam pelo tom cordato e delicado: sim senhor, pois não, perfeitamente... que se passava? Que poder novo possuía eu sobre os outros? Não acredito em mágicas e precisava encontrar uma explicação racional.

Para chegar a essa explicação racional, tive que inventar uma teoria. Antes de mais nada, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia. Dito o que, aí vai a teoria, válida para mim até que outros possam me explicar em termos mais científicos a razão do fenômeno: todos nós transmitimos em nossa voz vibrações sutis, que retratam as condições de nossos nervos, de nosso ego em dado momento. Se estou infeliz, minha voz irradia infelicidade; se estou rancoroso, transmito rancor; se estou em paz, meu contágio é a bondade. De nada valem aqueles suportes corteses da linguagem: nós irradiamos o que somos, as palavras do disfarce nada podem contra a nossa verdade. O fenômeno, em seus aspectos mais abstratos, não é desconhecido das pessoas atentas. A ação do ácido lisérgico apenas me permitiu observá-lo nitidamente, enquadrá-lo com uma formidável lucidez. Naquele instante eu estava despojado de rancor; daí o milagre da minha voz. Embora comparando pessimamente, eu era por um momento uma espécie de São Francisco de Assis falando ao lobo feroz. E o lobo, o lobo sabe, com o coração e o sangue, que amor com amor se paga.

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