Publicada no livro O mais estranho dos países, Companhia das Letras, 2013.
Não é fácil nem simples amar Belo Horizonte. É natural amar Ouro Preto, Recife, Salvador, Rio... Nessas cidades há um estilo de amá-las, que se transmite. Mas em Belo Horizonte cada habitante tem de inventar o seu amor (eu chamo amor uma complicação de sentimentos), como quem inventa uma lenda ou um poema. Nela não temos nem mesmo o rio e o mar, elementos através dos quais as crianças se põem em contato com o mundo imaginário, em que prefere viver. Menino de Belo Horizonte, de um lado tem o programa traçado pelos adultos: estudo, educação, ordens; de outro lado, uma cidade riscada a régua, sem idade e sem mitologia, sem muitos estímulos para a aventura lírica de todo dia. Os mitos fazem o espírito funcionar e o alimentam de amor. De repente uma pessoa se surpreende adulta e sente a compressão do tempo: esta pessoa amará o seu passado pelos incidentes que fizeram dele um acontecimento romanesco, uma fábula, uma promessa de mistério.
Mas não há somente três ou quatro maneiras de viver a infância e encantá-la; são tão numerosas essas maneiras quanto às crianças. O menino criado no deserto há de ter lembranças emotivas e inquietas, apenas não poderá explicar-se com a mesma espontaneidade de um menino criado no Rio. A experiência vivida por ele não encontra pronta e fácil ressonância nos outros, a linguagem que ele fala é mais ou menos desconhecida. Quem nasceu à beira-mar ou à beira-rio, quem nasceu em cidade velha, esses têm muitos irmãos na terra, e toda uma literatura a interpretar seus sentimentos. Mas quem nasceu em Belo Horizonte leva consigo um lastro de emoções que dificilmente se exprime. Emoções que, para mim, se exprimem por exemplo nos versos de Carlos Drummond de Andrade. Alguma poesia e Brejo das almas constituíram um tratado de gíria sentimental e irônica para a minha geração mineira. Por meio desses poemas comunicávamos nossas vivências de modo rápido e preciso. Expressões como “há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam”, “noite estrelada de funcionários”, “a bailarina espanhola de Montes Claros”, “as pensões alegres dormiam tristíssimas”, “uma namorada em cada município”, e tantas outras, enunciam coisas belo-horizontinas, momentos belo-horizontinos do meu antigamente. Subindo a pé de madrugada a avenida João Pinheiro, murmurávamos:
Perdi o bonde e a esperança
Volto pálido para a casa.
A rua é inútil e nenhum auto
Passará sobre o meu corpo.
O primeiro verso relata um contratempo muito belo-horizontino — a perda do último bonde noturno — e uma capitulação muito mineira — a perda da última esperança. O pálido do segundo verso é magnífico. Essa perplexidade, essa tibieza, esse desalento, essa palidez, esse vago desejo de suicídio — coisas muito mineiras em certa fase da vida.
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O que me seduz e aflige em Belo Horizonte é mais de foro emotivo que realidade explicável. Aí nasci, aí me criei. Não posso precisar até onde andei pondo na curiosidade que me vem de fora as imaginações que respiram dentro de mim. Um coração atribulado.
Certamente, alguma coisa a razão percebe e distingue e relaciona; mas não me satisfazem os informes da história e da sociologia. Gostaria de saber coisas que não pesam na balança dos estudiosos.
O azul de Belo Horizonte, por exemplo. Que significação tem o azul da minha montanha?
À maioria, minha preocupação parecerá frívola ou pretensiosa. A outros, entendedores dos truques da prosa, parecerá um jeito desastrado de tentar elevar liricamente este meu discurso. Assim, se contar com meia dúzia de pessoas solidárias comigo na indagação desse azul celeste, não me sentirei sozinho. Sete pessoas procuram compreender o azul do céu de uma cidade, tarefa inútil ou ridiculamente preciosa aos olhos dos outros, mas verdadeira e emocionante para elas.
Que transformações singulares ele traz para os habitantes da cidade? Que tonalidade de sentimento insinua nos espíritos? Que linguagem é o azul?
Por mais que respeite a erudição dos homens concretos, no plano social me oriente por ela, qualquer inquirição sobre o temperamento mineiro será incompleta para mim, caso não admita a influência do azul no povo de Minas.
Em mim, dado a comparações livrescas, o azul de Belo Horizonte é puro azul de Mallarmé. Azul malarmaico não define, antes amplia o segredo, enriquecendo-o de nuanças emocionais, tão mais abstratas quão mais real o seu vigor encantatório.
Assinalai do mestre francês todas as passagens referentes ao azul, e chegareis a um estranho conhecimento da aridez, do fracasso, do terror da experiência absoluta. Conquistareis para sempre um susto novo, um medo inédito. Mais do que isso, roçareis a sabedoria divinatória do azul, o que é mais completo, indizível e perfeito.
Coisas de poeta, dirão; coisas de poeta, repetirei com tristeza. Porque a minha dor e o meu despeito é não ser bastante poeta para contar com estilo de homem a verdade desse e dos outros mistérios.