Fonte: Os sabiás da crônica: antologia. Organização e prefácio de Augusto Massi.  Belo Horizonte. Autêntica, 2021. pp. 109-111.  Publicada em Para uma menina com uma flor: 1966. Organização de Eucanaã Ferraz. São Paulo, Companhia da Letras, 2009, pp.30-33, e, originalmente, na revista Sombra, de 08/1944.

Todas as manhãs de sol ia para a praia, apertada num maiô azul. Por onde passasse, deixava atrás de si olhares de homens colados a suas pernas douradas, a seus braços frescos. Os fornecedores vinham para a porta, os velhos para a janela, as ruas transversais movimentavam-se extraordinariamente à sua passagem cotidiana. Deixava uma sensação perfeita de graça e leviandade no espaço. Era loura, mas podiam-se ver massas castanhas por baixo da tintura dourada do cabelo. Trazia sempre o roupão meio aberto — e o vento da praia o enfunava alegremente, deixando-lhe à mostra as coxas vibrantes, cobertas de uma penugem tão delicada que só mesmo a claridade intensa deixava ver. Não tinha idade precisa. O corpo era de 20 anos, no entanto os cabelos pareciam velhos, mortificados de permanentes, e faltava-lhe aos olhos verdes a luz da mocidade. Usava uns sapatinhos vaidosos, de saltos incrivelmente altos, que lhe afirmavam melhor a elegância um pouco mole, um pouco felina. Seu filhinho, um lindo garoto de três anos, ela o arrastava consigo naquelas longas passeatas pela areia, pois nunca deixava de perambular um pouco para receber, aqui e ali, galanteios, nem sempre delicados, que a deliciavam.

Ficava sob uma barraca parecidíssima com ela, uma coisa colorida e fagueira, localizável de qualquer distância. Ali arrumava cuidadosamente seus pertences, esticava o roupão, acamava a areia com o corpo e depois se esfregava longamente de óleo, as alças do maiô caídas, o início do colo infantil bem desnudado, os dois pequenos seios soltos como limões. O garotinho ficava brincando por ali, ora em correrias, ora agachado ante a maravilha de uma concha, de um tatuí, de um pedaço de pau. Isso era o ritual de todos os dias, que lhe dava tempo para a vinda dos admiradores habituais. Chegavam invariavelmente, um após outro, uns rapagões torrados do sol, de tórax enxutos e carões bonitos, curiosamente parecidos, todos. Ela ficava deitada, os braços em cruz, afagando a areia, afagando a cabecinha do filho, que, às vezes, lhe corria a trazer alguma descoberta. Os rapazes pintavam com o menino, alguns enfezavam-no, como a convidá-lo a ir brincar mais longe. Ela deixava, mole para reagir, e de vez em quando deitava um olhar complacente para a praia, a vigiá-lo quando o via um pouco longe. Mas o guri fugia das brincadeiras brutas dos rapazes e ela o esquecia, perdida em sua tagarelice, até que um mais ousado a forçava a um beijo rápido, entre a gargalhada dos demais. Contavam-se fitas de cinema, festas e mexericos de praia, jogavam peteca e uma vez ou outra os rapazes lutavam jiu-jitsu para ela, que se extasiava. Cada meia hora, corriam todos em bando para um mergulho coletivo, e ficavam brincando na água, sem se importar com os demais — os rapazes a empurrá-la, a pegá-la, ela gritando, se defendendo, batendo neles, uma delícia! Nessas horas o menininho chorava, vendo se afastar a mãe. Mas ela voltava e o comia de beijos sempre consoladores. Na verdade, a vida naquela barraca de praia era a coisa mais inconsequente e agradável da orla marítima.

E assim foi todo o verão. Só nas manhãs de chuva a praia perdia a sua figurinha loura, mas isso mesmo era razão demais para o encontro dos outros dias: ela, o menino e os rapazes de sungas curtíssimas, os tórax crus, a dar lindas “paradas” para ela ver, a pegar nela, a jogar peteca, a lutar jiu-jitsu. A jovem penca humana aumentou consideravelmente durante aquele período, e tudo não se passou sem uns dois ou três incidentes entre os atletas, inclusive uma briga feroz a que ela assistiu emocionada e que terminou por uma linda chave de braço com distorção muscular. Essa briga, naturalmente, provocou outras, em bares e festas de verão, mas que se passaram longe de seus olhos e que ela ouvia contar na praia. Muitas brigas provocou ela, com seu maiô azul e a sua infantil tagarelice, mas nunca ninguém poderia dizer que tivesse recusado um novo fã, desses que conhecem um da roda e depois, astuciosamente, se aboletam e passam a ser o preferido de duas semanas. E todos sempre adorando o garotinho, achando-o uma beleza, jogando-o para cima, coisa que o apavorava e fazia sempre correr para longe. Ela se zangava levemente, mas acabava rindo com as cócegas que lhe faziam os rapazes, com os tapas que levava. Comia o menino de beijos e depois se estirava voluptuosamente, centro de uma rosa de olhares que não disfarçavam o objetivo. Houve um dia em que um, meio de pileque, chegou a dar-lhe uma mordida na perna. Ela zangou-se de verdade, pegou o filhinho e foi para casa. Deixou atrás um ruído de vozes masculinas se interpelando com ar de briga. Ficou-lhe uma semana uma marca roxa em meia-lua, pouco acima do joelho.

Um dia, quase no fim do verão, estava ela, como sempre, com seu grupo a contar um baile a que tinha ido na noite anterior, maravilha de riqueza e bom gosto. O menino brincava junto às ondas, e os rapazes debruçavam-se todos, em atitudes elásticas, sobre o seu jovem corpo estirado, ouvindo-a tagarelar. Pois imaginassem: tinha sido servido um jantar americano, e cada convidado trouxera uma garrafa de uísque, e às dez horas apagaram todas as luzes do terraço para aproveitar a claridade do luar: tinha havido tanto pileque e se via cada coisa de espantar, puxa, menino! Cada beijo em plena sala! Como ela não via desde as festas de Carnaval...

Eram quase duas horas e a praia estava completamente deserta. Só a barraca colorida alegrava a hora vazia e ensolarada, recortada contra a espuma forte das ondas e o azul vivo do céu. Ela contava sua festa aos rapazes, inteiramente embebida nas recordações da noite. Foi quando chegou um pretinho correndo:

— Moça, aquele menino não é da senhora?

Ela sentou-se:

— É sim. Por quê?

O pretinho apontou: 

— O mar levou ele.

Os rapazes se precipitaram todos e se jogaram n’água.

Ela saiu atrás, numa corridinha frágil, os braços meio içados numa atitude infantil de pânico. As ondas enormes alteavam-se longe e se abatiam em estampidos de espuma até a praia. Depois refluíam. 

Em vão. O mar levara mesmo o menino.

Os rapazes voltaram, incapazes de lutar contra os vagalhões e temerosos da correnteza.

Afrouxado sobre a areia branca, seu corpo fazia uma graciosa mancha azul.

vinicius-de-moraes