Fonte: Para uma menina com uma flor: 1966. Organização de Eucanaã Ferraz. São Paulo, Companhia da Letras, 2009, pp. 61-62. Publicada, originalmente, no tabloide semanário "Flan", de Última Hora, n. 5, de 11-16/05/1953.

Há uma praia dentro de outra praia. Uma é a praia do Leblon, e a outra não é praia — é Praia do Pinto. Há uma praia dentro de outra praia, uma onde vem bater, verde-azul, a onda oceânica, e outra onde vai desaguar o Rio escuro, em sua mais sórdida miséria.

Há uma praia dentro de uma praia. Ah, brinquemos de falar bobagem, brinquemos de inventar cirandas, porque a verdade é que há realmente uma praia dentro de outra, uma praia de fome, sujeira e lama, e ela se chama Praia do Pinto. Fica no Leblon, como um imundo quintal raso de apartamentos de arrogante gabarito. Não há nessa praia areia branca, barracas coloridas e coxas morenas absorvendo ultravioleta. Nessa praia que não é praia, é favela, há, isso sim, barracões de lama e zinco cheirando a imundície; há a sífilis dormindo com a tuberculose, no chão úmido da terra; há um enxame de disenteriazinhas engatinhando no lodo, um mundo de verminosezinhas patinhando nos próprios excrementos, e há descalcificações e reumatismos deformantes muito velhos, pitando solitariamente na noite fétida em torno.

São centenas de casebres sórdidos, a abrigar milhares de seres humanos, cuja única diferença de mim é a pele negra, negra talvez para esconder melhor o próprio sofrimento na treva povoada de moléstia, molejo de mulher e música malemolente. São milhares de dentes brancos a iluminar a noite espessa de samba, álcool e luxúria, enquanto, em torno, as criancinhas morrem, os meninos lutam no aprendizado necessário da valentia e os macróbios da resistente e dura vida negra se imobilizam como estátuas invisíveis, no pensamento de antigos deuses nunca esquecidos.

É a Praia do Pinto, praia da pinimba, praia da porcaria. São negrinhas de ventre pontudo, levando, apenas púberes, os frutos da ignorância e do ócio dos homens. São negras a carregar não ânforas gregas, mas latas d’água para o cotidiano patético. São negros esgalgos, de camisa de malandro, a se experimentarem em passos de capoeira. São dois malandros de siso grave a se encontrarem, no enflorescer de uma aurora cor de seio, para disputar, a faca ou a navalha, o abandono de uma mulata com pele de e o olhar de vem. É o golpe rápido, o estertor surdo, o ventre vomitando as vísceras de uma só vez.

É música. Música de violões se contrapontando. Música de batucada na tendinha; música de Ogum no terreiro. Às vezes, a voz estelar das pastoras, enredando em fios cristalinos a trama de um samba de enredo ou de uma marcha de sua escola.

Adiante, os apartamentos miram o mar, o mar que por vezes ruge e se precipita, demagógico, como a querer varrer do bairro a miséria da favela inelutável. Atrás é a lagoa serena, rodeada de casas brancas, gordas e espapaçadas.

No meio é a Praia do Pinto, a Praia do Pinto, a Praia do Pinto!

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Nota do editor: Praia do Pinto, favela horizontal situada às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, na altura do Leblon, ocupada em 1930 e extinta, após incêndio criminoso, em 1969, tendo seus moradores sido removidos para subúrbios distantes. 

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