Imagens cordiais

Das profissões que rendem pouco, sempre achei a de ascensorista uma das menos divertidas. Para nós, o elevador é a caixa onde nos metemos por alguns instantes, de passagem para algum lugar, sem qualquer sentimento que nos ligue aos companheiros eventuais. Para o ascensorista é a prisão a que está condenado durante a quarta parte do dia, ou da vida. Prisão que se abre a todo momento, com regularidade monótona, e de que ele não pode fugir. Sobe e desce, sobe e desce, e não sai de sua jaula. Tenho notado que, no fim de certo tempo, muitos ascensoristas perdem a cor, emagrecem. A melancolia é neles talvez uma doença profissional. Se a administração do edifício tem coração, passam a outro serviço, e redescobrem o ar puro, a liberdade, o prazer de mover as pernas. Naquela casa onde trabalhei quase 30 anos, pergunto pelo Valdemar, que há muito não via.

— O Valdemar anda doente, teve que deixar o carro. Está na portaria. 

Ia perguntar pelo Oscar, que também andava sumido, mas é o próprio Oscar que me aparece, também magro e triste, afastado da obrigação de subir e descer na gaiola enervante, e que me diz:

— Sabia que o Amigo morreu?

Não sabia. O Amigo! Pois justamente o Amigo era, entre todos os ascensoristas, aquele que espalhava em sua cabina a alegria de viver. Quem não o conheceu, no centro do Rio de Janeiro? Ascensorista do Ministério da Educação e do Edifício Darke, com 12 horas diárias de batente e uma barca de Niterói pela madrugada e outra à noite, sem motivo algum para agradecer à vida, ele agradecia e nos comunicava seu otimismo gratuito. Fez da palavra “amigo” um uso universal e aliciador, pois assim chamava a todos que entrassem no seu carro, fosse homem, fosse mulher, conhecido ou desconhecido, bispo, general ou mata-mosquito, de cara aberta ou cara de tigre. Se o próprio tigre estivesse na fila, receberia o mesmo tratamento — e ficava amigo do Amigo, a quem este nome foi dado em retribuição geral. Uma professora que veio ao Rio com bolsa de estudos escreveu: “Aprendemos mais com ele do que em todos os tratados de psicologia, pois o Amigo nos mostrou que a vida é fácil de ser vivida se assim desejamos”.

Ninguém sabia que ele se chamava Afonso Ventura. Mas todos sabiam que seu maior amor era o Vasco da Gama. Liam-se no seu rosto as vitórias do Vasco. As derrotas, não era possível ler, pois o rosto do Amigo continuava a espelhar a vitória anterior ou já espelhava a próxima vitória, que esta seria infalível, 4x0, “é o Maior”. O Vasco, para ele, ganhava sempre; no máximo, deixava de ganhar “desta vez”. Marcos Carneiro de Mendonça, figura lendária do Fluminense, tornou-o ainda mais feliz do que era, arranjando-lhe o título de sócio proprietário n° 16 do Vasco.

Um dia o Amigo sumiu. Os únicos elevadores alegres do Rio perderam a graça. O Vasco deve ter sentido falta de seu torcedor doente, baixou de produção. O Amigo mudara-se para Brasília, onde talvez a dobradinha lhe suavizasse a pobreza, dispensando-o de trabalhar em dois horários. E lá morreu um dia desses, não sei se a tempo de saborear as alegrias da Taça Guanabara.

Oscar conta-me que os colegas cariocas mandaram celebrar missa por sua alma, convidaram o Vasco, o Vasco mandou representante. Imagino a alegria infinita da alma, sentindo o Vasco presente.

carlos-drummond-de-andrade
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