Fonte:  Crônicas inéditas. Organização e apresentação de Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, pp. 89-90. Publicada, originalmente, na revista Diretrizes, de 21/06/1945.

Acautelem-se os predispostos: é chegada a época dos suicídios. Saiam, divirtam-se, vão dançar, evitem de ficar em casa. Sobretudo não pensem. Pensar não resolve nessas horas. O sujeito vai vendo que a coisa é mesmo sem solução e acaba gostando de que ela não tenha solução. Fica mórbido predisposto. Naturalmente que se engana. Suicídio nunca foi solução para ninguém: há sempre um outro jeito. Não que seja, como muitos dizem, uma covardia. Pelo contrário, deve ser preciso uma coragem louca para uma pessoa se matar. Mas é, evidentemente, uma fuga à realidade da vida, que é sempre muito mais simples do que pensamos. Quase sempre os chamados casos insolúveis são ovos de colombo. Os que se matam precisariam muito mais de um médico que de um revólver, um veneno ou um salto no abismo. Deveriam tratar dos fígados, se bevitaminar, se cansar com bastante exercício físico para poder dormir. Se nada desse certo, então que se matassem, já não está mais aqui quem falou.

Mas no fundo não é bem isso, eu sei. Pobres dos que se matam, que matam a única coisa que de verdade têm, que é a própria vida! Que monstro de desânimo ou de desespero não devem carregar em si, para se destruírem! De qualquer modo, que se acautelem. É chegada a época dos suicídios. Com o inverno, crescem das obscuras regiões do ser os fantasmas que armam a mão do amante infeliz, do jogador desatinado, do possuído de neurastenia, do doente incurável, daqueles que, por morte de outrem, se sentem irremediavelmente sós. Com o inverno tranca-se o homem e se deixa em contato com sua memória, a comparar as glórias passadas com as misérias presentes, e fica mais em face de sua própria vida, e bebe para se aquecer e para esquecer. Acautelem-se os predispostos porque o tempo é ruim, de pequenos fracassos diários, uma laboriosa construção de tédio, um cotidiano de esperas e lutas, um permanente cálculo de probabilidades, uma eterna conta de chegar, uma falta de amor.

Eu digo porque muita gente se tem matado ultimamente e isso é mau para os que vivem. Matam-se as pessoas, e das mais diversas maneiras. Matam-se os fortes a revólver ou se atiram dos altos edifícios. Os descrentes tomam veneno. Abrem gás os melancólicos, também os pulsos. Os abandonados entregam-se ao mar. Os humilhados jogam-se à linha férrea. As mulheres ateiam fogo às vestes e saem correndo a arder. O suicida desponta nesse tempo de humilhações públicas e malquerenças.

A causa está em tudo. No cansaço, no nervoso, na fadiga de tudo. No sensacionalismo aparente de tudo. Na falta de tudo de casa, comida, vergonha, trabalho, saúde, amor. Na falta de aonde ir e de onde ficar. Na dificuldade para bem amar. Na necessidade de calar para não ferir. No esforço para rir, dentro de tanta dor. No heroísmo de cada dia vencido na incerteza dos que virão. No vácuo deixado pela guerra, sumidouro de vidas e de consciências, fazedoura de aleijões e loucos.

Mas há que reagir, em nome da dignidade humana. Há que tomar medidas imediatas para que se desrecalque imediatamente a alma sofredora do povo e a carne patética dos homens. Há que permitir, há que deixar, há que dar. Que se proíba imediatamente uma coisa ruim já que tantas boas são proibidas, que se proíba qualquer sensacionalismo em torno de suicidas. Que sejam discretas as notícias e não se diga nunca a causa nem o meio empregado pelos que se matam. Que não se faça propaganda dos que morrem nem da eficiência do veneno que os causticou. Nada de dar bola aos que se matam. Pela minha parte, fica terminantemente proibido a partir de hoje qualquer tentativa de suicídio, sob pena de morte.

vinicius-de-moraes