As clássicas anedotas ensinam alguma coisa a respeito dos ingleses, mas há uma lógica lírica na excentricidade inglesa que escapa ao anedótico. O homour racial é dado importante à compreensão, mas não explica a dramaticidade latente que apenas adivinhamos no comportamento inglês. O gosto comercial da ordem. A reciprocidade das cartas. Fernando Pessoa dizia que os ingleses nasceram pra existir. Pra existir, é certo. No entanto, que ironia a deles para com a matéria da vida, de que se pode fazer apenas um sonho, uma sombra que caminha, significando nada.

Na rua Marquês de São Vicente inaugurava-se há perto de dois anos um jardim da infância para gente grande. Nas tardes de sábado, os homens chegavam em seus automóveis, desciam rindo, carregavam suas maletas para uma sala do prédio, reapareciam lá fora vestidos de calção e tênis. Entre jasmineiros, dálias, hortênsias castigadas, e jaqueiras, mangueiras e outras árvores imponentes, a fim de equilibrar qualquer exagero da suavidade das flores, havia... havia um campo de futebol. Aí, semanalmente, nós, cavalões maduros dos mais variados ofícios, voltamos a jogar bola.

Jogávamos contra a cidade inteira. Porque, é de se notar, o futebol é o esporte nacional deste país, mas contra ele existe um preconceito antipático. Moleque joga bola. Garoto burguês, dentro de certa moderação, pode fazer suas peladas na praia ou no colégio. Os profissionais são tolerados quando ganham os campeonatos. Mas chefe de família reservar um dia da semana para brincar de futebol, isso ninguém entende. O patrão não entende, os empregados não entendem, os amigos não entendem, os vizinhos não entendem, as espôsas não entendem (as nossas, iluminadas por Cosme e Damião, acabaram entendendo). Se um advogado chega ao escritório segunda-feira e diz que torceu o pé jogando tênis, a reação em torno é de respeito; se um industrial quebrar a perna jogando pólo, sofrendo além disso compressão no baço, nos rins e escoriações generalizadas, a notícia vai elegante e reverentemente para os jornais; mas advogados, industriais, bancários, jornalistas, médicos, engenheiros, servidores do Estado, estes que se arrisquem a confessar que se contundiram numa pelada.

Pois ali estávamos nós numa eufórica e selvagem pelada, a recuperar um pouco a agressividade perdida, que é um dom da inocência. Meio gordos, desajeitados, meio ridículos possivelmente, mas em paz harmoniosa com a nossa consciência, sancionados por uma alegria muscular e espiritual que não precisa pedir desculpas a ninguém.

Eis a cena: dez senhores correm dentro do pequeno campo, enquanto outros dez esperam a vez. Um humorista dantesco talvez encontrasse aí o modelo para pintar o purgatório particular dos que não possuíram suficiente fair-play na prática dos esportes. Cada um protesta em brados contra os adversários, o juiz, os companheiros, até contra si mesmo. Palhaço! Imbecil! Débil mental! As sarrafadas comem, o corpo a corpo é imprevisível. As caras se contorcem, avermelhadas, na indignação competitiva. O juiz perde a serenidade de árbitro e responde com furor às invectivas gerais. Os que estão na espera se enfurecem na suposição de que o tempo regulamentar já se esgotou. Às vezes o purgatório pega fogo de fato, e vira inferno.

Neste momento, como se atendesse a um chamado, ele costumava chegar, o inglês. Não sabíamos por que chegava, de onde vinha, quem era, e ninguém perguntava. O inglês atravessava devagar a alameda, calça cinza, blusa branca, silencioso e sério. Não dizia nada, ficava a olhar o futebol, atento, sem qualquer demonstração. Era homem de seus 50 anos.

De repente alguém brigava com o juiz, ou o juiz brigava com alguém, e a sua presença era notada: 

⏤ Apita pra nós, inglês.

Ele recusava com um gesto o apito que lhe estendia o juiz deposto, tirava do bolso o seu próprio apito. O inglês tinha um apito; o apito era de ouro; quem ofereceu o apito de ouro ao inglês foi um time de voleibol de praia.

Nos primeiros minutos, diante da serenidade equânime do inglês, o inflamável sangue brasileiro esfriava um pouco. Não por muito tempo. Logo depois, a irresistível falta de compostura nacional erguia-se contra a rocha sólida do Império Britânico. O inglês, tá cego? O que você está fazendo com esse apito na boca, ô inglês? Já ouviu falar em pênalti, ô inglês?

Mas o inglês olhava-nos e ouvia-nos como se estivesse num parque londrino a admirar o romance dos cisnes. Nossas ferozes reclamações lhe eram indiferentes. Não, uma vez o inglês perdeu a calma. Foi quando um jogador, punido por uma falta, gritou apenas: “Ô inglês!” Ele ergueu o braço e protestou: “Ô inglês! Fez foul mesmo e vem dizer ô inglês!”

Nós desconfiávamos que a nossa pelada era assistida maliciosamente pelos anjinhos do céu, que se punham a marcar um de nós, clamando em coro para o Senhor: “É este! é este !” E aguardávamos com medo que o Senhor, atendendo à meninada angélica, mandasse-nos o enfarte na hora do pique mais puxado. Mas o Senhor chamou foi o inglês do apito de ouro. Apitou seu último jogo e morreu na sexta-feira da semana seguinte. O campo ficou vazio no sábado. Perdemos o nosso árbitro, a nossa serenidade, o nosso inglês. E só agora descobrimos que guardávamos todos dentro de nós, sem saber, uma ternura grande por mr. Arnold James Templar, o bom inglês.

paulo-mendes-campos
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