Fonte: Quadrante 1, Edirtora do Autor, 1962, pp. 37-40.

Elas queriam ouvir o Presley, ou qualquer “bossa nova”, mas o tipo só gostava de um velho blue, que ele punha para tocar, sempre o mesmo. Ficava ali junto, de olhar perdido pela porta, fisgando um canto do céu longínquo. Faltava-lhe um amigo, um confidente, talvez até uma velha mãe que lhe batesse no ombro, com o conforto de uma doce animação. Ele só tinha aquela música, que nem sua era; musicazinha vendida de cada vez, como a mulherzinha venal que em tantas ocasiões enxuga as lágrimas dos desconhecidos.

Primeiro, ele só vinha ao bar por ela. Depois, viu que os donos da casa já se impacientavam. Pedia, então, uma tônica ou um guaraná, e apertava o copo, sentindo aquela tonteira boa, aquela paz dolorosa que lhe subia da música. Certa tarde, uma pequena caçoou com ele:

Ei vamos fazer um negócio. Quanto é que o senhor quer... para não tocar o seu blue?

Ele não disse nada. Pagou sua tônica e saiu. Desapareceu por três dias. Depois, numa hora em que ali quase não havia gente, com jeito de viciado que se envergonha, tornou a voltar e a se encharcar da música dolorida: “Night and dayDay and night”...

E o dono da casa, enxugando um copo, disse ao empregado:

— Olha — eu não te disse que o gajo voltava? 

Tão pouca coisa!... Umas miseráveis palavras em inglês — que ele não entendia direito. E, no entanto, parecia que quem fizera a música, e arrumara a letra, sabia dos gemidos fundos que arrasam as almas, justamente por não serem confessados, libertados pelo ar. A música chorava por ele, gemia por ele, e tinha pena dele também, e o entendia, parece. Será que todos os infelizes têm sua cantiga? Não adianta chorar, não adianta desabafar. Só a música vai além das nossas palavras, e é como o vinho que excita e absolve, ao mesmo tempo.

Night and day... Day and night”... Ele batia com a cabeça como ouvindo um bom discurso, e, às vezes, se enternecia, quase sorrindo, tal se alguém lhe contasse a mágoa:

— Comigo é a mesma coisa!

Era com sua canção que ele ia consumindo os últimos cruzeiros, como fazem os beberrões. Só que parecia um ébrio delicado. Mas, como os outros, entregues às suas fantasias, ele também andava por diferentes lugares, graças àquele veneno gostoso, ligado à sua natureza, já parte dele, e que sua ânsia reclamava. Um dia, o homem aborrecido, o freguês da eterna música, teve uma extravagância. Pediu lápis e papel. O garçom trouxe, e ele, vagarosamente, traçou qualquer coisa. Já havia tocado a sua canção. Colocou a ficha, depois de procurar a moeda pelos bolsos. Como já havia pago seu guaraná — saiu. Todos se admiraram de que ele não ficasse para ouvir a música, que permanecera no ar, plangente, triste. Mas, logo em seguida, alguém que frequentava o bar, chegou, esbaforido:

— Nossa Senhora! O homem daquela música... o homem que tocava... todo o dia... aquela música... se jogou debaixo do trem! Eu vi, quando ele se atirou!

Então o garçom se lembrou que o moço estivera escrevendo. 

Encontraram um bilhete destinado à polícia, onde se apreendia que ele fora deixado pela mulher. Ninguém sabia se deveria ter pena ou não, por aquele homem solitário, de dor tão egoísta, sem querer fazer confidências. Mas a sua música, a música que ele pagara, ficou chorando, triste, por ele, ainda, uns instantes. Ficou chorando por ele e por todos os incompreendidos. Não era uma música difícil, nem rara, era a música que lhe aceitara a dor, que o embalara: sua amante, sua amiga. Por esse suicida de subúrbio, em todo o Rio, só ouve o seu lamento. Ele o deixara, o pobre, como quem paga o próprio enterro, ou cuida da própria missa. Nem choro, nem parentes... Só uma breve música, e o esquecimento de mais uma dor que se apagou no mundo.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.