Afinal, a marcha Cidade maravilhosa serve ou não serve para hino do estado da Guanabara? A discussão em torno desta pergunta me parece acadêmica, diante da realidade do som coletivizado. Não se trata de hino, porém de marcha? Mas anda na boca do povo, para definir o Rio e expressar o sentimento carioca de amor a esta cidade, a ideia ingênua porém doce que fazemos dela, com abstração do juízo crítico. Não era hino? Ficou sendo, pronto. As mulheres o cantam quando estão cosendo, lavando roupa ou cozinhando; o rádio o repete; o teatro de revista o consagra; e no espírito popular, a marcha e sobretudo a designação Cidade maravilhosa aparecem como representações sonoras, como a encarnação de uma entidade ideal que é o Rio ou achamos que ele seja ou devia ser.

Alega-se que não é própria para cerimônias oficiais, sobretudo as de caráter fúnebre; o ritmo dançarino convida a mexer com as juntas, e não ao recolhimento cívico ou piedoso. Eu acho muito chatas as cerimônias oficiais, e creio que no fundo todos assim as consideram, embora sem coragem para dizê-lo e, sobretudo, para evitá-las. Não faz mal que a melodia ligeira e dinamogênica amenize um pouco as cerimônias graves. Se não é próprio a banda do Corpo de Bombeiros executar a Cidade maravilhosa à beira de um túmulo, que execute um trecho da Missa de Réquiem do carioca padre José Garcia, a menos que prefira atacar o Chopin velho de guerra; quanto às outras solenidades, espantem o tédio, senhores, sapecando a marchinha do baiano André Filho, que soube sentir e melodizar o Rio. Um hino que tanto sirva para a dor como para a alegria, para a colação de grau, a inauguração de um matadouro ou de uma companhia de seguros, a festa da Penha, o Dia do Motorista e a Semana da Criança não é um hino, é uma sinfonia, a menos que o façam desligado do real, incaracterístico, amorfo, e nesse caso não é nada.

Os hinos nacionais são via de regra baseados na Marselhesa, que não era hino nacional, mas canto de guerra. Os cantos de guerra tinham uma função: empurrar o civil para o campo de batalha e convencê-lo de que era um Alexandre, ou pelo menos, de que morrer é uma delícia. Os hinos nacionais falam terrivelmente em lutas pela liberdade, em morrer pela pátria, e papapá. Não são da melhor literatura nem da melhor música. A Cidade maravilhosa, com ser uma composição modesta, elevada a hino, oferece a originalidade de não encerrar nenhum pensamento mavórtico, majestático ou hiperbólico. É chã, coloquial – um desses momentos felizes em que compositor e letrista captam um traço da alma popular e lhe dão forma sensível.

E já pensaram no que poderia dar um concurso para feitura do hino da Guanabara propriamente dito, com todas as “especificações técnicas”? Nossos poetas não são muito fortes na fabricação de hinos, e que poeta o é? O gênero é espúrio, não convida à criação, mas à repetição. Imaginem se sai escolhida qualquer coisa laboriosamente imitada do inglês e amanhã estaremos cantando (não me refiro especificamente à atualidade, mas a qualquer tempo e situação), sobre música também inspirada em Bach, esse compositor brasileiro nascido na Alemanha: “Deus guarde o nosso governador! Longa vida ao nosso governador! Deus o faça vitorioso, feliz e glorioso! Que ele governe por longos anos o seu povo!

carlos-drummond-de-andrade
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