Fonte: Café da manhã, Olivé, [1969], pp. 75-76.

Àquela hora, a livraria tinha apenas umas três ou quatro pessoas bulindo nos livros. Haviam aproveitado o horário do almoço e, como velhos ratos, bem se saciavam no prazer de farejar as novidades ou de achar algum livro perseguido há anos.

A senhora que veio chegando já era conhecida da moça da caixa, que lhe deu um sorriso de muita amabilidade, como também de um dos fregueses ― por sinal um professor de literatura que a acolheu com alegria: 

― Estou com pressa ― disse ela ― quero apenas falar ao telefone. Como estes homens agora estão fúteis! Baixou a voz. Preste um pouco de atenção à conversa do rapaz que está telefonando. Tem complexo de Édipo, sem dúvida.

― Não, mamãe ― falava impaciente o moço ― já disse à senhora que não uso blusão vermelho ― já está chato ― e como que se desculpando: depois, não encontrei como a senhora queria... Comprei mesmo um azul. É isso mesmo, eu comprei um azul.

Do outro lado, alguém se zangava e o moço desligava e saía meio desapontado.

Então, a senhora, muito distinta, pediu licença a seu amigo professor e, sorrindo ainda para ele e para a moça da caixa, discou o número, tomou o fone, sempre mantendo a cordial atmosfera, a auréola de simpatia e distinção.

― Não tenho muito tempo. Estou falando da livraria. Você está melhorzinho da gripe? Eu vi a Geralda. Ela está ótima (a senhora sorria sempre para a moça da caixa e para o professor, embevecido). Mas onde foi? Aqui mesmo, ora, no restaurante de frente! Houve uma pausa. Ora meu querido, não seja um neurótico, querendo construir a sua realidade, uma realidade toda a seu gosto (o sorriso continuava e, agora não se sabia bem por que, dois outros fregueses deixavam de examinar os livros e passavam a observar a dama ao telefone). Já disse que sua mulher está almoçando aqui defronte; lógico que se ela estivesse no dentista não estaria almoçando com o Jorginho, aqui junto... É lógico.

A essa altura, o rato mais rato da livraria, um velho poeta aposentado dos suplementos e do serviço público, deixou sua busca na prateleira e fitou a senhora que distribuiu também para ele seu generoso sorriso:

― Acho que você ― dizia ela sempre ao telefone ― está em franco processo de reversão. Quer acreditar na sua mulher como se ela fosse sua mãe... Pois se você fica tão revoltado assim, que venha ver. Já disse. Aqui mesmo em frente, no restaurante, e está com o Jorginho... Se você não quer acreditar nos amigos, devia, ao menos, ler a “Crônica Social”. Você não leu ontem aquela direta para a sua mulher?

Do outro lado, houve um silêncio em que os sorrisos aumentaram, mas a senhora deixou de sorrir, ela mesma: Não posso perder tempo. Sou muito ocupada e não tenho paciência para aturar gente imatura como você, pois a realidade está aqui em frente, a seu alcance e, portanto... Até logo, até logo.

Desligou, cumprimentou a todos gentilmente e despovoou a livraria de sua graça e de sua finura.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.