Caderno B, Jornal do Brasil, de 28/01/1972.

Um domingo desses, em Cabo Frio, estávamos cultivando novos amigos numa casa projetada e construída pelo saudoso Hélio Uchoa. Ao meio-dia, sentados em cadeirinhas no vasto gramado, à beira do canal, espiávamos as crianças que nadavam e ouvíamos Chico Buarque numa vitrola portátil. Na outra margem, o terreno estava ainda entregue às árvores e ao mato bravio, circundado este por uma estrada estreita que, por força da paisagem, adquiria aspecto de praia particular. Ali se encontravam alguns banhistas e namorados.

Súbito, surgiu em alta velocidade um automóvel novinho em folha, e fez uma curva tão fechada que rodopiou duas vezes antes de se acomodar. Foi fácil perceber que se tratava de uma imprudência desnecessária, meramente destinada a impressionar a moça que vinha ao lado do automobilista.

Meia hora depois, ele manobrou o veículo entre as árvores e o canal. Deu marcha à ré, parou e logo avançou em alta velocidade, fazendo uma curva tremendamente audaciosa. Mas não deu certo. Embora em velocidade rapidamente reduzida, o veículo continuou descendo ao encontro da água e – tibum! – mergulhou. Na outra margem, nós víamos tudo com extraordinária nitidez e lentidão. O carro afundou na água, só não mergulhando por inteiro porque as rodas traseiras encontraram um obstáculo no terreno. 30 segundos depois, o automobilista conseguiu abrir a porta e saiu, enquanto sua companheira continuava imóvel, estuporada. Se o carro afundasse mais um pouco, ela teria morrido afogada sem articular um gesto em defesa da própria vida.

Felizmente, escaparam os dois ilesos. Mas o imprudente do volante não se deu por satisfeito. Reuniu a rapaziada que estava por perto e pularam na água uns 12 ao todo, iniciando a tentativa insensata de retirar o carro à força de muque. Lá do gramado nós advertimos que as rodas traseiras estavam deslizando quase imperceptivelmente, e que portanto a qualquer momento eles poderiam morrer esmagados debaixo do veículo. Ninguém deu a menor pelota, mas o bom senso prevaleceu tão logo perceberam que seria impossível realizar a tarefa que se propunham. O imprudente obteve uma carona e sumiu. Quando regressou, vinha ao volante de um caminhão basculante. Amarrou uma corda no para-choque traseiro, e, ainda com o auxílio dos voluntários, que empurravam a viatura de dentro da água, esta terminou de volta à terra firme.

Na noite desse mesmo domingo, debaixo de chuva na estrada escura, um amigo meu vinha de Angra dos Reis a caminho de Ipanema, quando furou um dos pneus traseiros de seu fusca. Refugiando-se no acostamento, ele ajustou o macaco, mas ao acioná-lo verificou que não mais funcionava.

Nisto pararam sucessivamente três fuscas no acostamento, e seus ocupantes indagaram qual era o problema. Informados, confabularam um instante e declararam que já não havia problema, pois estavam dispostos a resolvê-lo. E assim os cinco desconhecidos mantiveram o fusca levantado pelo pára-choque traseiro, enquanto o meu amigo trocava o pneu. E quando estava tudo em ordem, disseram tchau, voltaram aos respectivos veículos e desapareceram na escuridão.

Após o aguaceiro de verão que desabou ao anoitecer de quarta-feira, em Benfica, um carro-forte Brinks, cheio de dinheiro, foi tirado da enxurrada por duas dezenas de garotos agarrados a uma corda. Todos viram a espetacular fotografia publicada ontem na primeira página do JB: 20 meninos, a maioria sem camisa, magrelos, com água pelas canelas, sorrindo enquanto trabalham a troco de nada, só pelo prazer de participar do imprevisto.

Ora, quem passa os fins de semana em Angra dos Reis e Cabo Frio são pessoas que pertencem à chamada classe A. Quem anda na chuva sem camisa e descalço em Benfica são crianças desnutridas. Quem passeia de automóvel em Cabo Frio e Angra é gente que tem dinheiro sobrando, o que implica um certo grau de egoísmo; da mesma forma, seria perfeitamente aceitável que os meninos de Benfica nutrissem ressentimento contra aqueles que têm automóvel. E no entanto lá estão eles, na maior felicidade, puxando o próprio emblema da sociedade capitalista.

Dá para entender? Não; não dá para entender. Mas o Rio de Janeiro é assim mesmo, e Deus queira que assim continue, apesar do que possam pensar os psicólogos ortodoxos e os ativistas políticos que não levam em consideração o temperamento do povo.

jose-carlos-oliveira
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.