Fonte: A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969. Rio de Janeiro, Record, 2024, pp. 268-269..
Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 18/10/1964.
Com a morte de Antônio Maria, que vi apenas uma vez na vida, perco o meu informante em coisas noturnas. Podia dar-me ao descanso de ficar em casa, pois sabia que ele, vigilante, fazia a ronda da noite, e no dia seguinte contaria o essencial. E o essencial não estava em nomes de pessoas, notícias de comidas, vinhos e shows que constituíam aparentemente sua especialidade de cronista. Era o ar da noite, essa emanação filtrada entre luzes mortiças, fragmentos musicais ou simples ruído de pratos, na perspectiva alongada de ruas que se tornaram maiores, ganharam outra fisionomia; era uma espécie de resina escorrendo da face diversa da cidade, que esta não desvenda à luz do dia.
Ninguém me transmitiu melhor esta sensação de peculiaridade das formas noturnas do que Antônio Maria. Sem abusar do mistério e sem sequer usá-lo, ele captou e exprimiu intuitivamente, em palavras despreocupadas, o modo de ser e sobretudo de sentir que a noite infunde em seus “pastores” e um pouco em todos nós, cautelosos pequenos-burgueses que não nos animamos a explorá-la a fundo. Entre imagens confinadas de boate e a respiração larga do mar, no imenso cenário taciturno, Antônio Maria foi menos um repórter de coisas insignificantes do que um guetteur mélancolique a passear sua curiosidade inquieta, ao jeito de Apollinaire:
Comme un guetteur mélancolique
J’observe la nuit et la mort
Com a gulodice difusa, a sensualidade voraz dos gordos, parecia antes observar a vida, por ele estimada no que pudesse oferecer de prazeres concretos. Mas seu lirismo natural corrigia esse apetite de mero gozador do imediato, e aí temos o poeta Maria, que não quis nunca fazer da poesia mais do que um embalo dolente, um queixar-se de penas de amor em samba-canção.
Poeta que trocou a poesia em miúdos, jornalista que não aspirou a ser escritor, largava todos os dias uma prosa cheia de sabor e vivacidade, como um João do Rio moderno. Fica-se imaginando que livro não poderia ele ter deixado, reunindo lembranças pernambucanas, de que guardava a nostalgia, e visões da noite carioca, de que foi o intérprete mais sensível.
Há menos de um mês, telefonei-lhe pedindo que indicasse uma entre as milhares de suas crônicas, para figurar em Rio de Janeiro em prosa & verso, antologia-reportagem que Manuel Bandeira e este colunista montamos para a editora José Olympio. Respondeu-me que não guardara nada do que escrevera em mais de 20 anos: “Simplesmente porque não acredito no que escrevo”. Foi assim Antônio Maria, que deixa de si uma lembrança leve; toda a sua sensibilidade fica em um LP, enquanto o resto se perde nas coleções de jornais e revistas que quase ninguém consulta, e no hálito da noite – pois a noite é também esquecimento.