A barata. Por que este velho tema (chamemo-lo assim) volta sempre à máquina de escrever e daí passa ao jornal e entra na casa de todo mundo? Há assuntos graves, eu sei, mas o teclado quer escrever é a palavra barata, assunto que no máximo pede inseticida. E, se for possível, certa expressão de asco. Se possível. Os emissários submarinos e outros despertadores de náusea reclamam prioridade e mal dão ensejo a que se sinta nojo diante de uma barata.

Há mesmo, até, quem cultive um sentimentozinho de ternura pela barata. Pobre que ela é, desamparada, furtiva, aguardando a noite, o sono dos moradores, para cuidar de sua vida. À primeira chinelada, ou à segunda, pois a barata é fittipáldica, adeus existência. Então, certa alma pura, que se chama Joanita Blank ou Oswaldo Goeldi, consagra aos ortópteros blatídeos um amor feito de piedade, alimenta-os, deixa-os prosperar, salva-os do ataque indiscriminado de quem cultiva outro ponto de vista sobre a relação gente-barata:

– Essa não! Essa é minha amiga, não posso consentir que você liquide com ela!

– E como é que você sabe que essa aí é a sua amiga e não outra qualquer, se todas as baratas são iguais?

O protetor (ou protetora) de barata olha com desprezo quem lhe faz objeção tão boba. Há personalidade nas baratas, já não falando na variedade de espécies caseiras: a Periplaneta americana, a Blatella germanica, a Blatta orientalis... Não se deve discutir com ignorantes. Basta mostrar ao desinformado que a baratinha sob nossa especial proteção tem cabeça alaranjada, com duas listras castanhas. As de sua raça ostentam (ostentar é modo de dizer, barata não gosta de se exibir) cabeça amarela com listras pretas. Então você não vê, não sente a diferença?

Entenda-se. Não estou aqui para promover campanha sentimental em favor das baratas. Pertenço ao grupo fero que trata de eliminá-las de qualquer jeito, e tanto recorre à dedetização como à pancada direta, aplastante, com a sola do sapato. O naturalista Von Ihering recomendava que fossem caçadas a água fervendo. Recurso perigoso, que pode afetar tanto a caça como o caçador. Mas o próprio Von Ihering que, como observou outro, diz Leonardo Fróes, costuma julgar sob critérios morais o comportamento de espécies que jamais lerão a Ética de Spinoza, condenando-o à luz desses critérios ele próprio, ao descrever as baratas, põe de lado o nojo, para admitir: “Há delas de várias cores e tamanho, algumas até bem bonitas (se for permitida tal expressão) verde-gaio ou pintadas”. Assim, esteticamente, a barata pode ser objeto de admiração, em alguns casos e até mesmo, se for bastante colorida, ganhar capa de Manchete.

Temos de nos defender contra os insetos daninhos, e a barata é dos que mais fazem jus ao título. Para isto há o inseticida. Já não é tão eficaz a exclamação que assinala sua presença numa gaveta:

– Nojenta!

– Repugnante!

– Repelente!

– Imunda!

– Asquerosa!

– Sórdida! Porcaria!

– Vil!

Não lhes parece excesso de artilharia para alvo tão miúdo? Além do mais, canhoneio vão. A barata ignora nossos xingos, que não lhe atingem a estrutura. E daí, se formos tão severos com ela, que palavras terríveis guardaremos para qualificar indivíduos incomparavelmente mais daninhos, pois não devastam só uma gaveta, mas regiões inteiras do globo, e fazem recair seu poder maléfico sobre a humanidade em geral?

É prudente economizar certo tipo de objurgatórias, para que não nos falte munição em hora adequada. E barata não merece tanto. Já é, por si, animal condenado à clandestinidade e ao desprezo. Se uma consegue despertar sentimento amistoso no peito de alguém, maravilha é, sobre me render mais este papo-crônica.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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