Imagens de gente

O homem trazia um papel na mão, e consultou-o antes de perguntar se era ali que morava o sr. Fulano. E diante da resposta afirmativa: “Desculpe, mas o senhor residia em Belo Horizonte há 30 anos atrás”? Ouvindo que sim, pediu licença para apresentar-se. Deu nome e profissão: fotógrafo. O que desejava de mim era saber se me lembrava de certa empregada que tive em 1928. Marciana... Marciana da Silva. Como havia de lembrar-me? Fazia tanto tempo, e não é comum guardar nome de empregadas, salvo quando ficam muitos anos na casa e se afeiçoam ou se fazem afeiçoadas. De 1928 eu não tinha lembrança alguma desse gênero. Retivera na vida o nome de algumas empregadas simpáticas, nenhum era de Marciana. Podia fornecer-me outra indicação? “Não senhor, não tenho a menor indicação. Aliás, era isso mesmo que eu tinha esperança de obter do senhor: uma indicação qualquer a respeito de Marciana. É minha mãe”.

– Ah! Pode descrever-me o tipo?

– Também impossível. Não sei nada sobre ela, a não ser o nome. Nunca a vi desde que me entendo por gente, e do tempo de menino não guardo a menor lembrança dela.

– E como sabe que ela foi minha empregada?

– Está aqui nesta carta do senhor ao diretor do abrigo de menores, pedindo minha internação. Passei cinco anos lá, quando saí me deram cópia da carta. Não repare estar meio rasgada, não é de hoje.

O papel falava realmente de um garoto de sete anos, sem pai, filho de Marciana da Silva, cozinheira. O menino e uma irmã de cinco anos viviam em companhia da avó, num povoado. A avó falecera, alguém tomara conta da irmã, e ele ficara ao desamparo. 

Palavra escrita desencava lembrança, e uma vaga Marciana, sem rosto mas com um problema de filho, despontou na memória, palidamente.

– Agora estou me recordando, sim. Marciana... Uma alta, ossuda. Só isso. Parece que ela ia visitá-lo sempre, comprava presentes para levar…

– O senhor não está enganado? Nunca recebi visita no abrigo nem presente, que me lembre. Deve ser outro caso.

– E por que não me procurou quando saiu de lá?

– Eu tinha 12 anos e não sentia falta. Fui trabalhar numa fazenda do oeste de Minas, levei tempo na roça. Depois, rodei por esse mundo. Guardava o papel comigo, sem interesse de indagar. Não tinha a menor curiosidade de minha mãe, entende? Era como se ela não existisse, como se eu tivesse nascido do nada. Sem retrato dela, sem um objeto, sem uma voz para ouvir quando a gente está sozinho e pensa nos outros, como é que eu ia lembrá-la? Depois fui mudando. Não sei explicar, me veio o interesse por minha mãe, como é que ela seria, como não seria. Voltei para Belo Horizonte, andei procurando o senhor feito agulha. Ninguém sabia informar. Afinal vim para o Rio, estou aqui há meses. Ontem achei o seu endereço na lista telefônica. Fique sossegado, não vim lhe pedir dinheiro, ganho pouco mas o bastante. Queria era saber de minha mãe, se ela ficou muito tempo em sua casa, para onde terá ido, se alguma vez deu notícia. Estará viva? Não se lembra do rosto dela?

– É uma pena eu não ter nada para lhe contar, senão essa lembrança vaga de sua mãe. Mas não faça mau juízo dela porque não o procurou. Quem sabe?

– Mas o senhor pensa que faço? Compreendo tão bem que ela não quisesse saber de mim. Não podia me criar, só me daria miséria. Sua fé estava toda no abrigo, que talvez fizesse de mim alguma coisa. Se não me visitava é porque não queria se prender a mim nem me prender a ela, não acha? 

– Acho. Foi isso, certamente. 

– Estou sentindo tanta falta de minha mãe, o senhor não avalia. Já não sou criança, e isso vem com a idade, talvez... no meu caso.

– Talvez. Que vai fazer agora? 

– Vou continuar procurando minha mãe, Mesmo que não encontre, quero saber como era, preciso de um rosto, de uma fisionomia que eu possa fixar bem, como se a tivesse conhecido. O senhor me desculpe se achar meio esquisito eu me contentar com isso. Sem nada é que não posso ficar. Muito obrigado, até qualquer dia. 

Saiu, e não parecia desanimado.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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