Há dias, o menino Francisco, de seis anos de idade, filho do escritor Cyro dos Anjos, tendo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica, e já recolhido ao hospital, telefonou para casa e recomendou a uma empregada: “Vai àquele edifício azul da pracinha, procura o apartamento 35 e diz a uma garota enxuta que mora lá, chamada Marlene, que eu não posso me encontrar com ela no domingo, como tínhamos combinado, porque vou fazer operação, mas gostaria que ela me visitasse. Diz que não é nada de grave não, uma coisinha à toa nas amídalas, e que eu mando um beijo para ela”.

Esta providência de Francisco não é divulgada aqui para gabar a precocidade da nova geração, mas como homenagem ao Dia dos Namorados. Aos seis anos, ele já tem dessas finezas, que atestam o melhor do homem. Quem não for delicado para com sua garota pode ter muitos dotes intelectuais, triunfar no comércio, nas letras ou na marinha, chegar mesmo à presidência da república, jamais perderá certo ar suspeito que alienará nossa confiança. Os maus namorados traem-se à distância. Entendem muito de problemas técnicos, são apressados e azedos, reclamam contra tudo e ignoram o nome das flores; ignoram mesmo que as flores existem. Para eles, tanto faz ser domingo ou quarta-feira, tudo são dias disciplinados e reduzidos e apontamentos na agenda; já o verdadeiro namorado, se tem um caderninho, é para tentar lembrar-se de outros compromissos além dos que lhe inspira a doce condição namoril, mas as folhas estão sempre imaculadas, ou então ele jamais comparece aos almoços e entrevistas de negócios, que anotara; até se diria que tomou nota para evitar o comparecimento. Lê o boletim meteorológico assim como outros leem a bíblia, porque precisa de sol para o seu passeio a dois, mas sai sem guarda-chuva, debaixo d’água, e tira o paletó para abrigar a namorada, se é que não o estende na lama à guisa de tapete, para que ela não molhe os pés. Um bom namorado está sempre com o vestuário desfalcado, porque está sempre disposto a tirar qualquer peça para fazer em embrulho, esconder um gato, improvisar uma almofada, promover uma brincadeira. Não é servil, como não o são os doadores de sangue ou, mais simplesmente, os passarinhos que nos acordam com o seu canto, no ramo de árvore encostado à janela do apartamento. Fazem doação espontânea de seus pensamentos a alguém que talvez nem preste atenção nisso, como não prestamos atenção no pássaro ou no doador de RH. Por sua vez, recebe presentes – sorriso, carta, abotoaduras –  sem saber o que valem ou significam, pois a namorada em si já é um presente, e tudo mais se contém no seu encanto.

Conversas de namorados sempre me deram impressão de que os idiomas autênticos não foram ainda capitulados, e não poderão sê-lo nunca; estão dentro do português e do armênio como dentro de um sorvete, de um gato, de uma nuvem. A todo instante se inventam e se esquecem palavras; o que sai da boca é um verbo novo, adequado à circunstância, e só os dois interlocutores lhe sabem o sentido e o alcance; outras vezes, é a língua de toda gente que se renova num clarão; como dicionarizar as acepções de um minuto, de um mergulho na onda? Se mesmo quem as usou não se recorda mais do seu uso.

Neste ponto, minha amiga Sarah Marques, jornalista excelente, me telefona: sua irmã se casa no Dia dos Namorados, dia tão importante que o governo devia sagrá-lo feriado nacional, para que todos os que já foram namorados voltem a sê-lo, ou se recordem de que o foram. Boa ideia. Espero que Francisco, se chegar a presidente, a realize.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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