Fonte: Garranchos. Organização de Thiago Mia Salla, 2ª ed., São Paulo, Record, 2013, pp. 160-162.
Há alguns dias, percorrendo as salas dum ministério para tratar de certo negócio terrivelmente embrulhado, desses que dão aneurismas e cabelos brancos, eu e um amigo encontramos numerosas funcionárias bonitas. Uma delas forneceu-nos informações bastante vagas: deu-nos dois ou três números e, com os olhos redondos e úmidos, que um ligeiro estrabismo entortava, pareceu indicar a direção do lugar onde os nossos papéis deviam estar.
Corremos a outro ministério e vimos várias senhoras difíceis entregues a trabalhos incompreensíveis. Não achamos os nossos papéis, é claro. Andamos em repartições diferentes, voltamos ao primeiro ministério, ao segundo, tornamos a voltar, percorremos infinitos canais competentes — e em toda a parte esbarramos com senhoras atarefadas, que executavam operações estranhas, usavam uma linguagem desesperadamente confusa e recebiam indiferentes as nossas queixas e os nossos rogos.
Com o coração grosso e indignado, resolvi abandonar esse negócio infeliz e fui deitar uma carta ao correio. Tomei lugar na fila, mas antes que chegasse a minha vez a mulher que vendia selos deixou o guichê. Esperei uma eternidade a volta dela e fui-me aproximando devagar, na fila. A carta foi pesada, o selo comprado e uma prata falsa recebida no troco.
Marchei para o guichê dos registrados, onde uma espécie de mulher portadora de óculos e bastante idade se mexia como uma figura de câmara lenta.
Enquanto me arrastava seguindo os desgraçados que ali estavam sofrendo como eu, pensei nas deputadas, nas telefonistas, na professora primária que me atormentava e nos versos de certa poetisa que em vão tento esquecer. Evidentemente nenhuma dessas pessoas, deputadas, telefonistas, professora e poetisa, tinha culpa de haverem corrido mal os meus negócios nos ministérios, nenhuma me dera prata falsa, e era estupidez responsabilizá-las pela preguiça da mulher do registrado. Mas relacionei todas e julguei perceber os motivos de certos hábitos novos.
Antigamente, quando uma senhora entrava num carro cheio, havia sempre sujeitos que se levantavam. Hoje, nos trens da Central elas viajam espremidas como num meeting.
Ninguém fumava nos primeiros bancos dos bondes. Ainda existe a proibição num aviso gasto e metrificado, que tem o mesmo valor dos outros alexandrinos: ninguém o lê. A autoridade do condutor ficou muito reduzida, e o letreiro proibitivo tornou-se lei como as outras, artigo de regulamento.
Há pouco tempo uma senhora declarou num romance que as mulheres são diferentes dos homens. É claro. Mas, apesar da diferença, elas se tornaram nossas concorrentes, e concorrentes temíveis. Eu queria ver um examinador que tivesse a coragem de reprovar aquela moça de olhos redondos, úmidos e ligeiramente estrábicos, que encontrei um dia destes no corredor do ministério. Só se ele fosse cego.
O Sr. Plínio Salgado quer acabar com os banhos de mar, porque as pernas das mulheres se descobrem neles. Não vale a pena. São pernas de concorrentes, para bem dizer nem são pernas. Pensa que temos lá tempo de pensar nessas coisas? Tinha graça que, nos banhos de mar, fôssemos espiar as canelas da moça de olhos estrábicos ou as da mulher que nos impingiu uma prata falsa de dois mil réis. Não olhamos. Se elas chegarem perto do estribo do bonde cheio, ficaremos sentados porque pagamos passagem e temos o direito de ficar sentados. Isto.
Somos pouco mais ou menos iguais, apesar da afirmação da mulher do romance. Vão no estribo, se quiserem, de pingente. Ou fiquem junto do poste. Vão para o diabo. É isto. Concorrentes, inimigas. Ou amigas. Dá tudo no mesmo.