Fonte: Viventes das Alagoas, Rio de Janeiro, Martins, 1962, pp. 87-90.

Em Patos, no estado da Paraíba, surgiu há tempos um gramático. Ignoramos a data do aparecimento e o nome do homem se perdeu. Ali por volta de 1930 obteve notoriedade, foi discutido com interesse e algazarra nas redações e nos cafés.

Não era um tratadista maçudo e compacto, desses que valorizam minúcias e gastam centenas de páginas adivinhando textos velhos: era um vulgarizador amável e conciso, amigo de afirmações curtas, isentas de fel e vinagre. Se ele tivesse lido muitos cartapácios, arruinado os olhos e o espírito verrumando os clássicos, catalogando erros e acertos, seria intransigente, áspero, brigaria com outros indivíduos que, apoiados nas mesmas autoridades antigas e carunchosas, manejassem opiniões contrárias. E encouraçar-se-ia na aspereza e na intransigência — por lhe faltar convicção e recear cair em heresia.

Nada disso. A ciência dele era resumida e tranquila, corajosa por necessidade, livre de vacilações, como em geral a dos sertanejos nordestinos.

Quando alguém, naquela região dura de espinho, deseja construir uma casa, pega lápis e papel, traça firme as paredes, as portas, as janelas, o copiar, as salas e as camarinhas. Escolhe o material e dirige os carpinteiros e os pedreiros, que executam, sem regras complicadas, uma espécie de habitação. Não se consulta arquiteto. Realmente não existe arquiteto no lugar. Se existisse, porém, seria desprezado, pois quem vai morar na casa é o proprietário e não há razão para submetê-la ao gosto de pessoas estranhas. As paredes ficam baixas, as portas e as janelas pequenas, os quartos escuros. Foi assim que sempre se fez e não se modifica a tradição.

O juiz de direito, no júri, em falta dum rábula, confia a defesa do réu miserável ao boticário. O boticário se julgaria desprestigiado se recusasse o convite alegando o exercício ordinário de ocupações diferentes.

O chefe político recebe uma descompostura no jornal. Tranca-se e passa dias compondo a resposta, enérgica e longa, que é publicada na matéria paga. Ninguém a compreenderá direito. Poderiam ter sido invocados os serviços do promotor ou do tabelião. Mas estes não realizariam a encomenda razoavelmente: diriam coisas do ofício deles, esqueceriam outras, e o nosso articulista bisonho pretende vingar-se utilizando armas próprias, furando o almaço com raiva e força, dando murros na mesa.

Esse tabaréu diletante da gramática, parente dos três exemplos mencionados, notou alguns problemas de linguagem e decidiu resolvê-los. Em vez, porém, de buscar a companhia dos seus semelhantes e examinar aquisições anteriores, fechou-se e refletiu, como nobres figuras antigas que acharam a verdade no isolamento e na meditação.

Quando regressou ao convívio dos homens, trazia vários cadernos rascunhados em duro labor, frutos que amadureceram num folheto de quarenta páginas, onde as letras, falhadas e graúdas, esmorecem no papel amarelo. Nada aí se discute, nada se explica. Exatamente como se o autor, redigindo um largo decreto, eliminasse as considerações e entrasse logo a articular. De fato, a pequena brochura é uma série de mandamentos — arrola as expressões que se devem usar, condena as que não devem ser usadas.

Em geral, o gramático de Patos desaprova o que se refere à fecundação e a certas necessidades fisiológicas, julgadas por ele incorretas. O seu processo é muito sumário. Divide a folha por um traço vertical — e o que fica à esquerda está errado, o que vem à direita está certo. Às vezes não existe palavra conveniente para traduzir o ato inconveniente. Recomenda-se então um circunlóquio. Deitar ao mundo uma criatura em duas sílabas é feito. Indispensável enfaixar o recém-nascido em locução respeitosa.

Esse ente pudibundo chega a sugerir a supressão de vocábulos capazes de insinuar-nos ideias desonestas. Buraco, por exemplo. Se aceitássemos o conselho, restringiríamos bastante o dicionário. Mas teríamos decência, limpeza, a aprovação de alguns críticos literários que, nestes últimos tempos, vivem descobrindo obscenidades na prosa vulgar de romances inofensivos.

— Safadezas. Eu, nos meus livros, jogo todas as patifarias, mas por meios indiretos. Nunca usei palavrões de canalha, graças a Deus.

— Faz muito bem, Doutor.

Essas duas falas são de escritores modernos e temperantes, é claro, não do sujeito da Paraíba, casto por dentro e por fora. Tipo admirável. Foram provavelmente os intuitos morais que lhe deram aquela segurança, a certeza de estar indicando aos outros o bom caminho.

No seu modesto repositório de ensinamentos dignos não achamos evasivas nem dúvidas. Para falar verdade, ele se mostra indeciso num ponto, mas livra-se da dificuldade com prudência. Deu uma topada na crase, emperrou. E assim se manifesta sobre o desgraçado fenômeno:

— Terrível. Como os senhores não poderiam entender isso, vão deitando acento em cima de qualquer a. É o que devem fazer. Algumas vezes hão de acertar.

Lição desprovida de originalidade. Personagens muito mais importantes que o gramático da Paraíba adotam esse princípio.

graciliano-ramos
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.