Há pessoas que têm coisas importantes a dizer, porém não sabem dizê-las. Outras dominam a arte da expressão a serviço de nada. Juntar coisas inteligentes e modos adequados de exprimi-las, eis a raridade, mas aí está Gilberto Amado para documentar a feliz integração de matéria e forma, que torna visível o pensamento cristalino. Seus livros são exemplos disso. E sua conversa também. Ainda uma noite dessas, na televisão, falando sobre as razões de gostar do Brasil, a autenticidade cultural dos negros em suas práticas religiosas, o milagre da sobrevivência humana em regiões subdesenvolvidas do país, e mais sobre o que lhe ocorria no fluir da divagação, mostrou à evidência o que é ter coisas a comunicar e saber comunicá-las: uma graça, na dupla acepção.

Entremeando o assunto pequeno grande, fundindo-os em uma só matéria viva, Gilberto aludiu ao vezo formalista de tratar-se a esposa de “minha senhora”, cultivado com tal extremo que, em certa roda de homens, como o assunto fosse “bater em mulher”, um dos interlocutores perguntou ao outro:

— E você, já bateu em mulher?

— Já. Bati uma vez, na minha senhora. 

Medievalismo bem “classe média”, para uso externo, como se vê. A compensá-lo, nossa linguagem popular vai ganhando uma desenvoltura que chega a despersonalizar os indivíduos: antes, eram “sujeitos”, “camaradas”, “gajos” ou “tipos”; hoje, são apenas “caras”, no masculino: 

— Tem um cara aí querendo falar com você.

Há mesmo quem diga:

— Aí, eu olhei para a cara do cara, e falei assim…

Creio que “minha senhora”, com circunflexo e entonação distinta, é das últimas reminiscências do formalismo luso em linguagem falada brasileira. Identifica a “mulher de alguma distinção, dama”, a que “tem o domínio de algum escravo ou coisa”, e envolve galante subordinação masculina, que, na vida real, vem a ser o que nós sabemos.

Em Portugal, como observa Luísa Manoel de Vilhena em crônica recente no Diário Popular, de Lisboa, todo mundo é “senhor”, desde que seja, pelo menos, professor:

— O senhor professor Mamede aceita um salgadinho?

— Muito obrigado, senhor doutor Batalha, estou perfeitamente.

E se o “cara” está colocado mais acima na hierarquia social, tem direito a “sua excelência o senhor embaixador Matos de Amorim”, “sua excelência reverendíssima o cardeal Pantoja”. Queixa-se a Luísa:

“É impossível escrever uma notícia em português escorreito, por entre uma tal floresta de excelências”.

Na escrita — conta-me um amigo que andou por lá — torna-se imperativo observar as seguintes regras:

“Prof.”: professor universitário. 

“Dr.”: licenciado.

“Doutor”: licenciado que defendeu tese, ou doutor honoris causa.

E o “você”? Você não parece flor muito perfumada, pois nossos bons amigos lusitanos preferem esquivar-se a esse tratamento coloquial, incluindo-nos na terceira, distante, pessoa:

— O Francisco de Almeida Soares já reparou que...?

O Francisco de Almeida Soares — Chico, para falar direito, — pegado de surpresa, olha para os lados, indagando de si mesmo onde estará o seu homônimo, que ele não sabia existir. E não o encontra. Mas — diz o meu amigo — fica tudo tão remoto, de repente!

Por isso, nosso poeta Vinicius de Moraes não teve dúvida: para estabelecer o grau desejável de comunicação, aderiu ao “tu” no trato com poetas e artistas de Lisboa, naturalizando-se gaúcho, mas não sei como os “senhores professores” terão acolhido a abertura. Enfim, nossa língua materna tem esta particularidade: são duas em uma, e a gente se entende, assim ou assado, usando-as alternadamente ou em mistura.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
x
- +