Eu lia o jornal, na manhã abafada e cinzenta. O noticiário político não anda lá muito estimulante. Não demora e a editoria política pode se fundir com a editoria policial. No Rio, por exemplo. Seja a favor ou contra, é impossível a política ignorar o bicho e a droga. Um passo e é o narcotráfico. O esquadrão da morte. O extermínio de menores.

Então levantei os olhos do jornal e espiei lá fora o infinito céu azul. Não era azul, nem infinito. Mas lá estava, bem visível, uma personagem que nunca vi tão alto. Entre as nuvens baixas lá em cima, e o tumulto dos carros cá em baixo, leve, levíssima, uma garça. Na quina do último andar, o 12º. Altiva, elegante, via-se que resistia ao vento que soprava agora mais forte.

Nem sei se ainda há garças nesta época na Lagoa. Talvez haja. As cigarras, sei que sumiram. Ou pelo menos não têm vindo zinir na minha varanda, mal rompe a manhã. São a trilha sonora do verão carioca, as cigarras. Dão nos nervos de qualquer cristão, sobretudo quando começam a chirriar a sua zanguizarra no sono de um pobre insone. À tarde, ao cair do sol, são menos azucrinantes. Mas nem assim merecem a meu ver um único soneto. Quanto mais um poeta.

Mas lá estava a garça, hierática, serena, au-dessus de la mêlée. Incorpórea, toda branca, alvíssima. Bico e pernas, finos cambitos de uma etérea arquitetura. No seu perfeito desenho, só penas, toda plumagem. Se olhasse, devia olhar para o alto. E veria o céu além das nuvens de chumbo que corriam, inquietas. Uma garça sozinha, acima da luta pela sobrevivência à beira da lagoa. Uma garça que apenas fruía o silêncio de sua solidão.

Nisto, um bando de andorinhas flecha o ar. Setas raivosas, atacam de baixo e de cima, com súbitas paradas a um palmo do alvo indiferente. Afinal assustada, bico aberto, a garça se defende contra as pequenas agressoras. Cauda e bico, as asas quais tesouras afiadas, se trissavam ou gazeavam, não sei. Não dava para ouvir. Dava para lhes perceber o ímpeto de batalha e ódio, cada vez mais numerosas e aguerridas. Até que venceram. A garça alçou voo. Mergulhou em direção à Lagoa, ou ao chão. Já não há lugar no mundo para as almas solitárias.

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