23 set 1992

Os poetas se retiram

Periódico
Folha de S.Paulo

Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.

Mais um pouco e se acaba setembro. Está aí, à porta, o mês de outubro. E do alto de outubro já se descortina a fímbria de um novo ano. Em matéria de velocidade, nada ganha do tempo. Fundista olímpico, já nem corre mais. Despenha-se, na ânsia de chegar ao fim. Ou ao começo, o que dá na mesma. Pois todo começo é o começo do fim. Ritmo assim, ou mais rápido, só o da guitarra da inflação. Ainda outro dia, surgiu a ideia de homenagear poetas e escritores.

Veio primeiro Machado de Assis. Merecido. Ninguém lhe disputa esse lugar, se o critério não é o cronológico. À efígie, juntou-se uma frase de sua lavra. A intenção era não só homenagear, como divulgar o que as nossas letras têm de melhor. Depois do Machado, vieram outros. Agora, a Casa da Moeda está recolhendo dois poetas. A partir de 19 de outubro, saem de circulação o Carlos Drummond de Andrade e a Cecília Meireles.

Apareceram outro dia mesmo e já não valem nada. Quem quiser que guarde como relíquia. A cédula de 50 e a de 100 cruzeiros. Poetas e cronistas, Cecília e Drummond conheceram e aborreceram a inflação. Não podiam nem sonhar é que viessem a ser vítimas póstumas desta calamidade. Celebrada em vida também por sua beleza, seus açorianos olhos verdes, Cecília sai como entrou. Discretíssima. Também em silêncio, retira-se Drummond.

Pode ser simples impressão. O olhar do poeta me parece hoje mais triste. Não consigo ler a olho nu os versos que estão inscritos na cédula. Sei que mencionam o secreto semblante da verdade. Tristemente secreto, se tal semblante se esconde por trás do artifício de um sigilo. É hora, isto sim, de pôr à mostra a cara da verdade. Nada de voto sorrateiro, que é fuga e omissão. Segredo não é disfarce. Não é máscara de covarde.

Sigilosa, pontualíssima, chegou aí a São Paulo ontem, às 15h44, pelo horário de Brasília. Aqui no Rio, leio que chegou às 15h43. Um segundo de diferença. Assim tivéssemos tamanha precisão em tudo mais. Nossa consciência democrática, por exemplo. A cívica certeza de instituições estáveis. E funcionais. Mas afinal quem chegou aqui e aí? Sim, senhor, a primavera. Ora, se é primavera, ainda é tempo. De recomeço. De renascer.

otto-lara-resende
x
- +