Periódico
Manchete, nº 508
Publicada também em: livro Homenzinho na ventania, de 1962.

"Porque deste modo ordenaram as leis da sabedoria infernal". Assim está escrito num poema babilônico. Mas, tirante literatura especializada, para o curso de agronomia, de Pedro Paulo, rapaz bonito e rico, pode-se dizer que nunca leu coisa alguma. Morava na Tijuca e levantou-se cantando Corazón de melón na manhã de 9 de novembro de 1961; Pedro Paulo (Pepê, como lhe chamavam os contemporâneos da era da sigla) fazia vinte anos.

O fato que se narra, como na letra do fado, pode ser mentira, pode ser verdade. Não, serei franco: talvez seja uma mentira envolvida pelo halo de uma difusa verdade. A verdade poética de cada um, a verdade que se ingere como bebida, isto é, de acordo com a resistência e a disposição de cada um.

"Corazón de melón, de melón, melón, melón..". Quando Pepê transpôs a porta de vidro da copa, o pai, a mãe, a irmã e Rosa, a copeira, bateram palmas e entoaram, ainda roucos, parabéns a você. Uma euforia suplementar presidia o acontecimento, pois todos sabiam, mas todos fingiam ignorar, esta coisa insuportavelmente deslumbrante: Pedro Paulo, depois do café com leite e do mel, ganharia do pai um indescritível presente, nada menos do que um Volkswagen, vermelhinho como os amores.

O carro estava lá fora, as chaves estavam no bolso do pai, as recomendações de prudência estavam nos lábios da mãe, o riso, no rosto da irmã, os vinte anos em flor, no coração vivo de Pepê. E Pepê, pondo a máscara da naturalidade, sentou-se ao volante e tomou posse do mundo.

O mundo começa e acaba em Copacabana, pois a Terra, segundo Cristóbal Colón, é redonda. Tinha rádio, e um rádio se liga. "Ouviremos a seguir A ilha dos mortos, de Rachmaninov." Meio minuto de procura, no entanto, e Pepê encontrava o seu corazón de melón. O relógio da torre da Central marcava dez e vinte, e, quando os ponteiros se alinham em reta, uma criatura amada está pensando em nós.

Pepê ainda não amava ninguém. Pepê antes não tinha carro. Agora Pepê tem um carro. O carro é de Pepê. O mundo inteiro ama Pepê. Pepê também se ama com inocência, e muito.

Pedro Paulo da Tijuca apaixonou-se por Istar, uma garota do outro mundo, na curva da Rua Francisco Otaviano (quem passou pela vida em brancas nuvens etc. foi espectro de homem, não foi homem etc. etc.) com a Avenida Atlântica. Às seis horas da tarde, os dois, enleados um ao outro, beijando-se em cima de um túmulo de mármore escuro no cemitério São João Batista. Se o leitor acha estranho ou invraisemblable, peço-lhe que não me atire pedra, pois daqui a pouco vai ser muito mais estranho e muito mais invraisemblable. Devo dizer, a favor da narrativa, que Istar, a começar pelo nome, era uma garota estranha, toda de branco vestida, tal qual uma donzela dos tempos brancos do Romantismo, silenciosa, reticente, pálida, misteriosa, doce, lânguida, um enigma impossível de ser encontrado em qualquer parte do mundo moderno, muito menos em Copacabana. Por isso mesmo, Pepê, o forte, o bonito, amou Istar perdidamente. Tivesse ele lido O morro dos ventos uivantes, teria se lembrado de Emily Bronté; como não era o caso, comparou Istar com Greta Garbo, que só conhecia através da nostalgia paterna. Acrescento, ainda a favor da narrativa, que antes de ir ao cemitério, os dois estiveram em vários lugares sadios da cidade, inclusive na Barra da Tijuca, onde Pepê almoçou, e ela tomou um pouquinho de guaraná. Mas Istar, insisto, era uma estranha e queria ser amada sobre um túmulo; Pepê era um simples e topava qualquer parada. Só tinha medo de ser preso, mas Istar lhe disse que nada aconteceria quando baixasse o crepúsculo. O crepúsculo baixou e os dois se amaram. E à boca da noite Istar desapareceu, enquanto Pepê olhava a primeira estrela. Que garota mais estranha! Curioso, ele acendeu o isqueiro e foi lendo com terror a inscrição do túmulo: Aqui jaz Istar – 28 de fevereiro de 1921 – 9 de novembro de 1941.

Pepê nascera no dia 9 de novembro de 1941, quando Istar morreu aos vinte anos de idade, há vinte anos exatamente. Pepê não acreditava em alma do outro mundo. Aquilo só podia ser uma brincadeira do Mariozinho, muito bem urdida, sem dúvida. Saiu do cemitério, pediu uma coca-cola, uma ficha, telefonou ao Mariozinho, que negou tudo, mas morrendo de rir. Pepê, de qualquer forma, achou que estreava bem seus vinte anos em flor, e entrou no carro. Ligou o rádio e somente aí acordou para o terror: "Acabaram de ouvir A ilha dos mortos, de Rachmaninov." A coincidência excessiva o sufocava. Afinal, o que é que há? Esta não! O carro varou, voando, o Túnel Velho. Pedro Paulo foi encontrado morto, ao volante, de encontro a uma árvore da margem da Lagoa. Roleta paulista, só pode ser roleta paulista, disseram, quando notaram o seu rosto bonito de menino. Com o sacrifício, pode ser que o amor volte sobre a Terra. Porque deste modo ordenaram as leis da sabedoria infernal.

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