25 set 1965

A garota de Ipanema

Periódico
Manchete, nº 701

Publicada,  posteriormente, nos livros Hora do recreio, 1967 e O mais estranho dos países, Companhia das Letras, 2013, pp. 253-255. E também na revista Manchete, de 6 de maio de 1972 e no Jornal do Brasil, Caderno B Especial, de 5 de março de 1989, com o título A garota de Vinicius.

A garota de Ipanema pode ser comparada a um faisão real: por ser dourada; e pode ser comparada à primavera: porque volta todos os anos com renovado esplendor; pode ser comparada a uma catástrofe: por ser notícia de jornal; e pode ser comparada ao Brasil: por ser cálida e nos fazer suspirar; pode ser comparada ao poeta Rimbaud: por ser precoce; e pode ser comparada a Rui Barbosa: por saber uma porção de coisas e provocar discussões; e ela pode ser ainda comparada a uma amendoeira: porque varia muito de cores; e pode ser comparada a uma uva: porque dá em cachos; pode ser comparada ao Pão de Açúcar: por ser distinguida ao longe; e pode também ser comparada a um bookmaker: porque recebe telefonemas o dia todo; pode ser comparada à rainha da Inglaterra: porque ela também condecoraria os reis do iê-iê-iê, e pode ser comparada à Lua: aonde todos gostariam de chegar primeiro; pode perfeitamente ser comparada a um luxuoso transatlântico moderno: porque enche os olhos quando passa; e pode ser comparada a uma foca: por possuir um equilíbrio fora do comum; pode ser comparada à melhor poesia: por ser inefável; e pode ser comparada à coisa pública: porque você não pode levá-la para casa; pode ser comparada sem erro a um feriado nacional: porque põe um alvoroço nos corações; e pode ser comparada a um verso de Verlaine: porque o resto é literatura; pode ser fielmente comparada a uma valsa de Strauss: porque traz mansa nostalgia aos homens de idade; e pode ser comparada aos soberbos pássaros tropicais: porque não gosta de clima frio; e pode ser comparada a uma revista: por ser fato e foto; e pode sem dúvida ser comparada a um sorvete: porque refresca; e a garota de Ipanema é ainda como as quedas do Iguaçu: porque atrai os turistas; e pode ser comparada ao Manequinho: porque também ela pode ser de Botafogo; pode ser comparada a um automóvel: porque todo ano há novos lançamentos; e pode ser comparada precisamente a uma gaivota: por ser de uma elegância extrema; e a garota de Ipanema faz pensar na primeira mulher que houve no mundo: porque a roupa é um castigo para ela; e pode ser comparada ao petróleo: porque o petróleo é nosso, ou por ser uma riqueza natural; e pode ainda a garota de Ipanema ser comparada a uma grande distração: porque pode causar uma batida de automóveis; como pode ser comparada aos dias do Terror: porque faz muita gente perder a cabeça; mas pode também ser comparada a um círculo: porque a sua figura não tem princípio nem fim; e pode sem exagero lembrar um soneto: porque cabeça, tronco, braços, pernas fazem dois quartetos e dois tercetos; e pode ser comparada a uma estrela: porque ela tem luz própria; como pode ser comparada a um gol de Pelé: porque é preciso vê-la para crer; mas pode igualmente ser comparada a Didi: porque passa muito bem; e é possível compará-la aos trens da Central: porque está sempre atrasada; como não seria demais compará-la a um capítulo do kantismo: por ser um imperativo categórico; e pode ser comparada a um samba de Noel: por causa da bossa; mas talvez fosse melhor compará-la a um samba de Tom: por ser bossa nova; e com o devido respeito pode ser comparada ao duque de Caxias: porque ela ajuda a unidade nacional; e pode ser comparada a um cavalinho novo: porque é cheia de graça; e pode, mudando a perspectiva, ser comparada a uma obra de arte: por ser muito bem-acabada; mas pode, se você quiser, ser comparada a um satélite em órbita: porque circula muito; e pode ser comparada a uma flor: porque seu colorido é natural; mas pode ser comparada a uma bandeirante: porque carrega quase sempre uma barraca; e ela é como a pedra do Arpoador: por estar sempre lavada; e pode ser comparada até a um torresmo: por ser tostadinha; e pode ser comparada às árvores do Rio: porque ou está excessivamente podada ou exibe uma vasta cabeleira; mas pode ser comparada a uma fonte: porque canta de dia e de noite; pode ser um esquilo comendo uma noz: por ser um amor; mas pode ser comparada à bomba atômica: porque, se ela quiser, pode acabar com o teu mundo, ou porque nos faça lembrar no inconsciente o atol de Bikini; e pode ser sem estranheza comparada ao colesterol: por- que aumenta a pressão arterial; mas pode ser como vinho branco: porque vai muito bem com umas ostras; e é como o peixe: porque a água é seu elemento; e pode ser como um soco no olho: porque às vezes chega a doer; e pode ser como um pensamento famoso de Proudhon: porque ter a propriedade dela é um roubo; como pode ser comparada a um jardineiro: porque ela sabe quebrar um galho; finalmente, a garota de Ipanema é como a girafa: porque ela nem existe.

paulo-mendes-campos
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