O fato de meu nome estar incluído na antologia de poetas bissextos que Manuel Bandeira organizou, publicada agora, não me acabrunha a liberdade de comentá-la. Pelo contrário, me sinto muito à vontade e descompromissado de modéstias: a fração de minha responsabilidade na autoria do livro é mínima. Para ser exato, o responsável único é o próprio Manuel Bandeira, não apenas por ter preparado e prefaciado o volume, mas por ter sido o autêntico inventor dos bissextos, o Colombo de um arquipélago poético cujas ilhas não têm outra relação entre si que a fatalidade de estarem cercadas de água por todos os lados.

Um livro de versos deve ter a sua unidade. Se é uma antologia, o tempo é esta unidade ou, então, cuuertas características comuns que podem ser qualidades puramente estéticas. Também os bissextos apresentam entre si um ponto de contato, não a forma que pode variar dos versos desmesuradamente livres à graciosidade da quadrinha bem medida, mas o tema. O tema relaciona os bissextos entre si e os envergonha perante os outros. São eles poetas circunstanciais e, como só existem duas circunstâncias na vida, o amor e o tédio (o resto é epifenômeno), ficam os bissextos condenados ao círculo do coração e da náusea ao hábito de viver. São estes dois os seus temas. Manuel Bandeira surpreendeu-lhes o segredo e o classificou, em colaboração com Pedro Dantas, um bissexto que muito vem contribuindo espontaneamente para a análise da espécie a que pertence. Ao vazio da vida, Manuel Bandeira chamou “via besta”, assimilando as reflexões de Mario de Andrade sobre o Carlos Drummond de Alguma poesia. Este é o primeiro tema. Quanto ao implexo sentimental, que dita o teor do segundo, ele adotou o epíteto sugerido pelo mesmo Pedro Dantas: “dor, de Menelau”, ou seja, a mágoa amorosa de Menelau na Ilíada.

Nunca pude compreender a causa primeira que impele um coração pisado aos versos. Embora a tendência geral seja confundir poesia com arrulho, não conheço nenhum argumento filosoficamente aceitável que nos explique o motivo pelo qual, quando jovens, começamos a lidar as amadas simultaneamente com o soneto. Do mesmo modo, ignoro porque os jovens que continuam sendo poetas, grande parte deles, reduzem suas manifestações poéticas à expressão do sentimento erótico. Há em tudo isso um problema mais complexo do que se imagina, um mistério psicológico ligado a um mistério filológico, muito próximos de certo das primeiras experiências de cura pelas palavras que o moço Freud observou na clínica de Charcot. Quando, entretanto, definimos ou compreendemos rigorosamente a poesia, não encontramos entre ela e o amor nenhuma relação sustentável. Pode-se afirmar desta maneira que os poemas sentimentais dos bissextos, não sendo uma necessidade orgânica de expressão através da linguagem, não passam de autoterapêutica. Isto distingue o bissexto dos poetas em que a poesia é uma solicitação constante, os contumazes.... Porque o antônimo de bissexto, esclareceu ainda Pedro Dantas, é contumaz, indivíduo que, por sofrer talvez a “dor de Menelau” da infância à velhice, e de um modo amplo, indeterminado e incurável, apega-se aos versos como o ébrio à garrafa de aguardente. Contumaz é o poeta reincidente, ou o poeta engagé como o classificou na França Patrice de La Tour du Pin.

Manuel Bandeira, assim, não apenas organizou una antologia de natureza inédita, mas vem contribuindo muito para o conhecimento da essência poética, porque entre um bissexto e um contumaz estão os segredos da poesia. Além disso, ressalvando as competentes exceções da modéstia, os poemas dos bissextos costumam pecar pela excelência de sua qualidade.

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