São duas horas da tarde. Dona Josefa tricota em um canapé. Do tapete morno, dos reposteiros graves, dos móveis de acaju, do espelho em ébano entalhado, do cravo mogno, das porcelanas de Saxe exala (segundo a expressão da neta) um cheiro de cemitério. A avó não se agasta. Esse odor de cemitério é o único vivificante para ela. O que sugere morte para os olhos da moça, a ela lembra-lhe a vida. Se a criada abrisse uma janela, se o vento da praia entrasse, dona Josefa morreria sufocada.

Quando o relógio bate duas horas, dona Josefa se levanta e sobe as escadas. Daí a uma hora, surge outra vez na sala como se fosse ao baile da Ilha Fiscal: vestido de seda preta, borzeguins de pelica, corpete, gorjeira de folhos engomados, chapéu de palha, mitenes de renda nas mãos enrugadas.

É verdade, dona Josefa vai à rua. Há mais de quinze anos que sai a essa mesma hora. Há mais de quinze anos que tem um pecado às três horas da tarde. Perdendo o marido e a mocidade a um só tempo, renunciou a tudo, fechou-se com os seus fantasmas, cobriu-se de austeridade, mas...

O chofer abre a porta, Dona Josefa vai seguindo no Rolls Royce ao longo da praia, ganha Botafogo, onde ela deixou um pouco de sua beleza, chega à cidade. Dona Josefa segue a pé pela rua dos Latoeiros (hoje Gonçalves Dias) e entra na Confeitaria Colombo. Solene e fria. E aqui o seu pecado. Aqui ela se comunica com a vida.

Seus olhos se fixam na vitrine de doces. Hesita um instante. Depois o indicador parte com a decisão que só tem as pessoas muito velhas e muito ricas: “este aqui”. Come devagar, com um ar imparcial. Agora, este aqui. O dedo aponta de novo. Agora aquele. Solene e fria.

*

Nosso colega Pedro Dantas foi há algum tempo procurado por um rapaz que vinha do interior com uma carta de apresentação. Queria trabalhar no Rio. As coisas eram difíceis porque o moço não tinha experiência nenhuma, tendo conhecido até então sua cidadezinha provinciana. Dias depois, no entanto, dizia-lhe Pedro Dantas que o emprego estava arranjado, que bastava ele apresentar-se com seus documentos. Aí, o rapaz fez uma cara de espanto. Que documentos eram esses. Certificado de reservista, por exemplo. “Sem um certificado de reservista, a vida aqui no Rio é impossível”. O rapaz não tinha certificado nenhum e perguntou o que devia fazer. “Bom, há dois meios; ou você vê se consegue no Exército um certificado de terceira categoria, ou então, meu amigo, não há outro jeito: sente praça”.

O moço ouviu atento, agradeceu e despediu-se: “Vou fazer o que o sr. está dizendo”.

Dois anos depois entrava na redação o rapaz, procurando Pedro Dantas:

— O senhor não está me reconhecendo? Sou aquele moço a quem me prometeu emprego. Dei baixa ontem: aqui está minha caderneta de reservista. Que devo fazer agora?

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