Um cronista escreveu  há alguns dias a história (ia escrevendo patética, mas tenho muito medo de adjetivos) de uma senhora amiga sua, que, voltando ao Brasil depois de dois anos, à primeira vez que abriu uma torneira verificou que não havia água. “Estamos no Brasil!” – disse ela.

Ontem, fomos ao cais, receber um amigo. Não é brasileiro, é inglês. Vive aqui há mais de dez anos, e volta de umas férias de três meses. Ama o Rio e todas essas coisas que o turista contempla com mera curiosidade e às quais o estrangeiro residente, em geral, não se adapta: o samba, a feijoada, a preguiça, a falta de educação, a macumba, a pobreza, as favelas, etc.. Nosso amigo foi para casa, abriu a torneira. Não caiu nem um pingo. Uma pessoa da família informou: “Há dois meses que está assim”. Ele sorriu desconsolado, cordialmente, e comentou:

– Não adianta… Pode faltar água que não adianta. É o Rio, deve ser a cidade mais desorganizada do mundo... mas é a única cidade de que eu sinto falta quando estou longe. Pode faltar água! Quero viver e morrer é aqui.

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“Boa vida” é um conhecedor no sentido filosófico da palavra. O bom gosto é uma limitação antidionisíaca. Quem come bem, desconhece o prazer da voracidade, assim como o entendido em música não pode sentir a doce languidez de uma canção tola. Um senhor de minhas relações leva seu bom gosto a todas as coisas. Come bem, bebe bem, veste-se bem, conversa bem, ouve apenas boa música, lê apenas os bons livros, aprecia apenas as mulheres muito bem. 

Com seu bom gosto sistemático, ele se recusa a outro reino, preferindo compreender as coisas a senti-las.

Ontem, entretanto, nos dizia:

– Meu caro, já não posso mudar: há trinta anos que vivo assim. Mas, confidencialmente, me arrependo muito... Estou convencido de que a vulgaridade é a coisa mais agradável deste mundo. Mas não posso mais tirar a máscara.

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Djidji, nossa empregada, é a única pessoa deste mundo que consegue comprar meio quilo de carne de segunda pelo preço de um quilo de carne de primeira. Ir ao açougue reclamar, não vou, não tenho tempo, não tenho jeito. Eu e Djidji iremos é para o céu.

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Contou-nos uma dessas pessoas que começam todos os casos extraordinários ou engraçados, assim: “isso eu posso dizer que é verdade, porque eu vi com meus olhos”. Disse que na sua cidadezinha natal uma velha muito beata estava doente para morrer e apavorada com a transição. O vigário, mortificado, exprobou a tibieza:

– Minha filha, este é o dia mais feliz de sua vida, para o qual você veio se preparando todos esses longos anos. Por que esse medo? Não sabe que o mundo que você está deixando não presta e que o outro é todo felicidade?

A velha murmurou:

– Sei, “seu vigário”, mas eu já estava ficando tão acostumada neste!

paulo-mendes-campos
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