Conheço um engenheiro. Jamais ouvi de sua boca referências a cálculos de concreto. Este engenheiro é um leitor de literatura. Compra livros, lê, comenta, conserva livros, tem ternura pelos livros. Conhece a vida dos escritores, vai a conferências literárias, todos os seus amigos são literatos. Lê com método escrupuloso e apenas nisso se denuncia sua vocação para as ciências positivas. Se há alguma coisa que não compreende bem em um livro, para de ler, e só recomeça depois de ter vencido a dificuldade. Conquista a literatura como um cabo de guerra conquista o território inimigo: traçou planos, calculou tudo, eliminou certos livros supérfluos, adiou a leitura de outros. Não é boêmio, porque isso faz perder tempo e, talvez, diminua a vida, isto é, a leitura de muitos livros. Competente na sua profissão, não quis ganhar dinheiro e não se casou, sabendo que as injunções do matrimônio e das riquezas lhe furtariam o conhecimento de alguns autores essenciais.
O mundo para Silvio Felício dos Santos reduz-se a termos de leitura, de aprendizagem do mundo e da natureza humana. Esse engenheiro não procura nos livros a mecânica das palavras, mas o coração da vida.
Discreto e simpático, as opiniões de Silvio são ponderadas e vêm tocadas de um certo pudor, como se pedisse desculpas por se interessar tanto por literatura. Ficamos sabendo que livro está lendo, ele quer saber as opiniões de todos, pesá-las, confrontá-las, obter uma lição definitiva. Não tem pressa, não se impressiona com os sucessos do momento: está entregue, por exemplo, à Tempestade, porque chegou a vez de ler Shakespeare. Está em dia com os autores nacionais e lê sempre com apetite as últimas produções dos amigos.
É o leitor. Perspicaz, cuidadoso, de bom gosto, encontra-se certamente entre os dez leitores de Machado de Assis. E dá a essa época de cientificismo uma lição de fidelidade à vida.
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Quando desci do lotação, restava de mrs. Gardner uma poça de sangue. O cadáver fora removido para o necrotério, a embaixada americana tomara providências para evitar a formalidade legal da autópsia. Atirara-se, por ciúme do marido, do 12º andar, o corpo se destroçara na platibanda da sobreloja, escorregando para a calçada.
Às duas da madrugada, as pessoas reunidas em torno do sangue (era sábado) ainda gozavam os mistérios tristes da vida.
Eu morava no mesmo edifício, no 10º andar. Do meu quarto podia ver os fundos do apartamento de mrs. Gardner. Não era bonita, mas achava sensual seu corpo grande e forte, inquietantes os seus olhos estrangeiros.
Quando a primeira claridade da aurora descia sobre a área do prédio, tudo estava quieto. Tinha sido insuportável o calor da noite. Agora, tonto de ter dormido mal, via pela janela aberta que um pouco de brisa tinha entrado na área, restos de um vento soprado do mar que amanhecia, varava os apartamentos que dão para a avenida Atlântica, ia balançar peças intimas de mrs. Gardner, meias de seda, combinações, calças, pendentes de um cordão esticado. Pensei também um instante nos mistérios tristes da vida, e fui para a praia, onde era esplêndido o domingo de verão.