Cena da vida carioca: o lotação rodava pela praia de Botafogo, quando alguém exclamou: “Olha o cachorro”! O carro parou, desceu o rapaz e, depois de alguns minutos, voltava a tomar assento no lotação, com o cadáver de um cachorrinho, que depositou ao seu lado. E começou a falar alto, para todos ouvirem: “Se estivesse vivo ainda, ia levá-lo a um hospital. Está morto, vou enterrá-lo. Só num país de imbecis se faz uma coisa destas! Nos EUA, quem mata um cachorro ou um gato pode sofrer pena tão grave como quem atropela uma pessoa. Desde 1928 há uma lei punindo esse crime. O cachorro presta serviços que muito homem é incapaz de prestar. Na Coreia, americanos e chineses usam cães para levar mensagens, enfrentando o tiroteio. Em Nova York, os cegos são dirigidos na rua por cachorros e todo o trânsito para, quando aparece um deles. Também tomam conta de crianças, vão à venda, fazem serviços de gente. Aqui no Brasil, não. Mata-se um pobre cãozinho como este e desrespeitam o cadáver, passando por cima até virar massa. Perto de minha casa, uma senhora desalmada atirou à rua quatro cachorrinhos recém-nascidos, depois de dar uma surra na cachorra mãe. Recolhi todos ao meu apartamento, contra a lei, porque a lei aqui é contra os cachorros. “Quem não respeita a vida dos animais não respeita a vida dos homens”! O discurso continuou por aí a fora, com erudição enciclopédica e histórica sobre a utilidade dos cães. Em Copacabana, desceu o jovem, com o cadáver nos braços. Foi um alívio geral entre os passageiros, que afinal respiraram. “Esse camarada é doido”, disse o chofer com uma gargalhada de desafogo. Todos riram.

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O professor Américo Valério, em declarações (que não chegaram a ser sensacionais) a um vespertino, diz que renega a transfusão de sangue, como fator de criminalidade, taras e doenças, uma vez que se transmite com o sangue as más qualidades do doador. Cita casos, ocorridos em sua clínica, em que os transfundidos se transformaram, depois de certo tempo, em vagabundos, relapsos, falsários, epilépticos esquizofrênicos, eróticos, alcoólatras, abúlicos, imorais, amorais, suicidas, etc., etc...

O professor, no entanto, talvez não esteja vendo o maior alcance de sua descoberta, que seria o de aproveitar sangue de gente boa em gente ruim. Por exemplo: a muitos funcionários públicos se injetariam transfusões de Herbert Moses; a este, mais tarde, se daria um pouco do sangue de uma escriturária letra “H” de um Ministério, para que ficasse um pouco menos eficiente; ao sr. Olegário Mariano, dar-se-ia um pouco do sangue do sr. Manuel Bandeira; trocando-se um pouco dos sangues dos srs. Luís Carlos Prestes e Plínio Salgado, ambos acabariam senadores pelo Partido Libertador; o sangue do sr. Ataulfo de Paiva seria aproveitado nas regiões de alto índice de mortalidade; aos mudos, um pouco do sangue do padre Ponciano; aos tímidos, o sangue do sr. Flores da Cunha; ao sr. Ademar de Barros dar-se-ia, à força, um pouco do sangue impoluto do brigadeiro Eduardo Gomes; aos políticos vaidosos, o sangue do general Dutra; não faltariam homens inteligentes que se oferecessem para doar sangue à Câmara dos Vereadores; ao general Góis Monteiro uma boa dose do sangue de um funcionário aposentado dos Correios; aos motoristas de lotação, um pouco de sangue de tartaruga misturado ao sangue de um velho sacerdote franciscano; ao sr. Pedro Calmon um pouco do sangue do sr. Sobral Pinto; Greta Garbo, quem sabe enviasse uma proveta de seu precioso líquido para nossas atrizes e Lawrence Olivier duas provetas para nossos atores; no sr. Oswaldo Teixeira seriam feitas, periodicamente, autotransfusões, a fim de que continuasse sempre e cada vez mais o sr. Oswaldo Teixeira, patrimônio da má pintura nacional.

Encheríamos colunas citando exemplos, todos de grande utilidade patriótica. Quanto a nós, humildemente nos candidataríamos a umas gotas do sangue de um Lafer, de um Jafet, um Lodi, o suficiente para dar uma rendazinha de uns cinquenta mil cruzeiros mensais.

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