Tenho pena da mulher de Tolstói, que copiou várias vezes os originais de Guerra e paz. No entanto, tenho mais pena de Tolstói, que foi obrigado a escrever seus infindáveis romances. Pessoa pouco íntima do vício de escrever poderia alegar que a obrigação não existe e que o escritor russo se pôs a contar histórias por espontânea vontade.

Duvido. Todos os escritores repeliriam a insinuação maliciosa de que escrevem porque assim o desejam. Todos concordariam na aceitação de um incômodo exterior levando ao papel: falta de dinheiro, necessidade de exprimir o que trazem engasgado na alma, automatismo absoluto, sedução da glória, essas coisas são as tiranias da pena.

Me lembro de Dom Francisco Manuel de Melo que não via na tristeza boa tinta para a literatura. Mas isso não destrói a certeza de que uma folha em branco põe muitas amarguras na alma e declancha remorsos antecipados e apreensões de responsabilidade. Tenho colhido algum material sobre esse desencanto de ter que escrever e, se não deponho através de testemunhos alheios, é para não atulhar a crônica de nomes ilustres.

Se escrever é virtude, deixar de escrever, ou resistir à tentação de, não chega a ser um defeito. Um certo tédio à palavra escrita sempre existiu em todos os escritores, os bons e os ruins. A preguiça está entranhada no espírito de todos que fazem frases.

É engano achar que Marcel Proust passou anos de sua vida a observar a sociedade que o rodeava com o propósito frio de retratar aquela gente em um romance. Nem digo que a obra tenha arrebentado no coração maduro de Proust como inexplicável florada no outono. Não. Proust, desde os primeiros tempos de seu mundanismo, sabia-se o futuro autor da “Recherche”, e procurava esquecer-se desse medonho compromisso adiando sempre o momento negro de sentar-se à mesa para começar, na dissimulada e profunda esperança, talvez, de morrer de repente, sem escrever. A doença agravada é que o colocou asperamente defronte de sua obra, a solidão é que o impediu de fingir por mais tempo.

Tenho as mais humildes admirações por Marcel Proust. Entre elas o exemplo que nos deu dos dois polos em que oscilam os que escrevem: preguiça e força de vontade. Dentro das contradições, sem as quais é impossível explicar qualquer gesto humano, a preguiça e a capacidade de esforço se misturam a todo esforço intelectual, como toxinas e antitoxinas indispensáveis ao espírito. Se é necessária certa ociosidade para compreender o mundo e seus habitantes, para transformar essa compreensão em matéria emotiva é preciso uma resistência brutal.

Respeito as pessoas que conseguem escrever muito, ainda que seja da pior qualidade. O tio Balzac me dá vertigens. Rendo homenagem a certo publicista patrício, dos mais tontos literariamente, pelo simples conhecimento de sua imensa bibliografia. Compartilho da opinião de Jules Renard, que apenas admitia como verdadeiro escritor quem possuísse enormes volumes publicados. Para ele, na literatura há somente bois: uns mais fracos, outros fortíssimos, capazes de puxar dezoito horas de trabalho por dia.

Assim como em um edifício não fica sinal do sofrimento dos que o levantaram, assim não vemos além das bibliotecas a raiva dos que as escreveram, os desânimos, os desesperos, o nojo de escrever.

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