Meu primeiro impulso foi tocar do apartamento aquele homem corpulento e de voz grossa. Eu mesmo o chamara, eu mesmo encomendara a mudança; contudo, meus sentimentos não raciocinavam e eu sentia nele o inimigo que vinha expulsar-me de casa.
Examinou as peças, mediu os móveis com um olhar experiente e despudorado, fez o preço. Como eu concordasse, pegou do telefone e deu instruções à companhia. “O que existe mais aqui é livros”.
Daí a meia hora, os bárbaros chegavam. As coisas estavam acomodadas na sua velhice e discretamente compunham um lar. Depois que eles começaram a revirá-las, empilhá-las, foi como se as desnudassem brutalmente para mostrar os estragos e os ridículos do tempo. Quando agarraram o armário, ele perdeu a dignidade e cambaleou: tinha um pé torto o coitado. Do quadro de Chagall caiu uma chuva espessa de poeira. Uma gaveta aberta revelou uma barata tonta e rápida. Nunca pensamos que esse tapete estava tão sujo. Nunca tínhamos reparado que essa mesa estava tão manchada. Era uma surpresa contínua e desagradável...
Viver, filosofei, é colecionar porcarias: Os carregadores não filosofavam. Agarravam os objetos com as mãos sujas e sem carinho, com um gesto impessoal que não distinguia o que cada coisa tem de particular, de personalidade. Não é direito segurar um volume de História das ideias políticas do mesmo modo com que seguramos um livro de Verlaine. Uma brochura nacional de papel ruim não exige a mesma delicadeza que pede um volume da Pléiade.
Para eles, no entanto, aquilo não eram as coisas que viviam comigo e me confiavam um pouco de sua confidência. Estavam fazendo uma mudança. Não eram amigos nem inimigos de meus objetos, não amavam aquele vaso azul-tarde-de-maio-em-Minas, como também não se antipatizavam, e as aversões criam uma secreta aliança, com aquela bandeja trabalhada que nos deram de presente.
Às vezes, paravam, exibiam uma bugiganga qualquer, e perguntavam: “Isso vai”? Vai, eu dizia, para pensar depois: vai tudo ou não vai coisa nenhuma. Porque me vinha também, em reação àquele amor súbito e exagerado, uma vontade de destruir tudo, tudo aquilo que me submetia a um passado e me criava o compromisso do futuro. Que adiantava mudar se eu levava as minhas coisas? De cambulhada com minhas coisas, ia eu, o traste mais imprestável de minha vida, o mais gasto, manchado e ridículo.
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O rei Farouk há muito que esperava ser deposto, tendo uma vez dito a um amigo:
— Dentro de alguns anos, só haverá cinco reis no mundo: o da Inglaterra, o de copas, o de paus, o de ouros e o de espadas.