11 out 1952

A primeira vez que fui a Porto Alegre...

A primeira vez que fui a Porto Alegre, queria ser soldado. Aprendi ordem unida, mas não decorei os nomes das armas de matar. O capitão me confiou a vigilância de uma estrada, uma estrada vermelha e bela, por onde deveria avançar o inimigo. Dormi. Quando acordei, descobri meu coração paisano, um coração sem inimigos, apenas armado de suas heranças obscuras. Foi naquele crepúsculo, longe do acampamento, que me senti desligado da vida militar.

Dez anos mais tarde, voltando a Porto Alegre, era funcionário público. Procurei o cadete adolescente e não o encontrei. Estava dormindo para sempre em Viamão, embalado por cinco rios, a cavaleiro de uma estrada bordejada de pinheiros.

Depois de ter redigido a notícia da inauguração do ambulatório da autarquia federal, andei um domingo inteiro. Fazia verão e não havia ninguém. Subi a rua da Praia, cheguei a uma praça, uma pracinha insolúvel, sem abrigo contra o sol, sem mocinhas, sem crianças, sem mendigos. Mas havia uma porta aberta no ângulo de uma rua. Olhei lá dentro e vi um homem fazendo um caixão de defunto. Só havia o homem, o resto era caixão empilhado, caixões pobres, caixões de segunda, caixões ornamentais do tamanho de um gigante, do tamanho de um anão. Porque não vale a pena pensar que as crianças costumam também ser colocadas dentro de um caixão.

Era um homem forte e sadio. Assobiava um tango. Eu admirava suas mãos hábeis de carpinteiro, fortes e precisas, mãos que teriam feito cadeiras firmes, mesas onde as famílias jantam, mesas onde as datilógrafas escrevem, barcos para andar no oceano e nos rios, marcos de porta, por onde se entra e se sai, marcos de janela, por onde se pode ver a vida de uma rua. Mas as mãos do armador estavam destinadas a fazer caixões para os mortos. Primeiro, bateu os pregos e fez uma caixa comprida com uma tampa. Passando do tango a rancheira, começou a lixar a tábua, que a terra há de comer, com um ruído que dava nos nervos, que a terra há de comer.

Eu não podia andar nem deixar de perceber que o homem fabricava o meu próprio caixão. Ele fingia que não me via, imantado de tristeza à soleira da porta, fingia que não ouvia bater o meu coração. Lixava a tábua: lixava, lixava, com um carinho perverso. Sofria de exatidão pela morte, a minha morte, gozava o meu pavor, provando de leve com a palma da mão a maciez da madeira. Parava às vezes o assovio para soprar a poeira. Eu estremecia. Ele assoprava a poeira.

Com um esquadro e um lápis, marcou quatro pontos de cada lado, onde pregou bem pregado quatro alças de metal; onde quatro amigos fortes um dia se agarrarão. Adaptou a fechadura, experimentou a chave; como a lingueta prendesse um pouco, pingou um pouco de óleo de máquina de costura na mola do trinco.

Forrou por dentro de um pano brilhante e por fora de um veludo preto com bordados coloridos. Nas quinas, aplicou rebites dourados e frisos prateados no sentido horizontal. Quis lhe dizer que se tratava de um caixão luxuoso demais para a modéstia da minha morte e muito acima de minhas posses.

Não me deu atenção: com um prego na boca, fez a última voltinha de rancheira, olhou o que tinha feito e viu que a sua obra era boa.

Aquela noite, em Porto Alegre, confesso senhor juiz, eu bebi. No meu sonho, um esquife branco de velas negras descia as correntezas de outro sonho.

paulo-mendes-campos
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