Fecunda e ousada é a imaginação humana quando trabalhada pelo amor e outras coisas parecidas. No entanto, coitado do homem, que pode ele contra o acaso, se a própria exaltação em que ele por vezes se encontra tem por consequência o fortalecimento do imprevisível?

Nesta crônica, o homem se chama José, quarenta e dois anos, casado, pai, amante, bem-posto na vida entre banqueiro e bancário. Vivia entre o banco e o lar, digo, entre o banco, o lar e o bar, que podem ser três locais conciliáveis e saudáveis, desde que o indivíduo tenha suficiente força de vontade para não se viciar em nenhum deles. Quem exagera o álcool, acaba bêbado; quem exagera o lar, acaba babaquara; e quem exagera o banco, acaba banqueiro de coração preto.

José, entretanto, era o equilíbrio em pessoa, até o momento em que se modificou a figura geométrica de sua vida. De triangular, ela passou a ser quadrada. Aconteceu, como diria meu colega Jacinto, uma loucura desquitada no equilíbrio do Zé.

Paixão, complicada paixão, porque segundo a mulher de José, se ele já tinha saído do banco (às seis horas) e ainda não estava no bar (às seis e meia) em que diabo de lugar tinha se metido? Foi um mês aquele de explicações difíceis, a ponto de se tornarem exasperantes. Descobriu José que não era de seu feitio a mentira cotidiana, miúda, irritante. Comparou-se um dia a esses sujeitos antipáticos que de três em três meses apareciam invariavelmente no banco para reformar com 20% uma reles promissória de 15 mil cruzeiros.

Essa comparação lhe deu uma ideia meio honesta: precisava liquidar o caso, o doméstico e o louro. Deixar de mentir em casa e passar logo de vez uma boa temporada com a loura. Bastava-lhe um mês. Qual! Era homem para resolver tudo em 20 dias.

Mas como? Achou a solução quando, ao encontrar-se com um amigo na rua, este lhe informou que no dia seguinte embarcaria para Buenos Aires, onde passaria as férias.

Aquela noite José chegou cedo em casa e armado de todo o seu engenho de dissimulação. Tinha que ir a Buenos Aires. Negócios urgentes do banco. Duas semanas. A mulher sofreu um pouco e concordou logo.

Na manhã seguinte, de mala pronta, José seguiu para Buenos Aires, digo, para o apartamento do amigo que havia seguido para Buenos Aires.

Passemos por alto em seu primeiro encontro livre com a loura. Nada temos a ver com isso. Digamos apenas que por volta de meia-noite, José se encontrava sozinho, tonto de felicidade. Tanta que lhe deu uma irresistível vontade de tomar um uísque. Tomou um uísque, tomou dois, tomou três. Depois deste, começou a achar que não seria má ideia  dar uma voltinha em uma boate. Perigo? Não havia perigo. Os parentes da sua mulher eram uns chatos: nunca se soube que um deles houvesse entrado em um bar.

No vago pilequinho em que se achava, achou até mesmo divertido aquela ideia  de dar uma saída. Tinha lido um livro em que o personagem voltava à sua cidade, depois que todos o consideravam morto.

Na boate, ele escolheu a mesa mais disfarçada, mais escura, pediu a garrafa e se embriagou, em primeiro lugar, da situação romântica e aventureira em que se metera. A própria sombra de medo que o perseguia contribuía para o seu prazer.

Quando os amigos de bar de José entraram, por caso, naquela mesma boate, o infeliz dormia. 

― Puxa, o Zé hoje estava com sede, disse um deles.

― Vamos pedir um café para ele e acordá-lo, disse outro. 

― Não, deixa ele dormir.

Para resumir a história: dormindo, pronunciando palavras vagas, José foi conduzido às cinco e meia para casa. Campainha, a mulher espantada, mas que não diz nada, as desculpas sem graça dos amigos. José dizendo à esposa, daí a pouco, que tinha perdido o avião, não, quer dizer, que o avião não tinha saído, que ficara no bar do aeroporto, que amanhã explicaria tudo. E mergulhou no sono.

Quando acordou, não viu a mulher. Viu aberto sobre a mesa de cabeceira um telegrama: “Viagem excelente ponto Buenos Aires grande cidade ponto Imensas saudades e beijos vírgula  do José ponto".

E durante duas semanas o fiel amigo de Buenos Aires dava notícias telegráficas de José: “Negócios quase concluídos morrendo de saudades ― mais cinco dias de separação”.

Até que chegou um telegrama de alívio: “Sigo primeiro avião ponto José”.

 

Nota: Título atribuído por Humberto Werneck à crônica identificada na base de dados da instituição como “Fecunda e ousada...".

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