Confesso, minha senhora, que não foi amável de sua parte, quando eu voltava do Vasco e Fluminense, ter me falado assim: “Não sei como se pode gostar de futebol. Acho futebol uma coisa de uma selvageria”...
Antes de mais nada, eu também já joguei futebol. Menino, fui um goleiro valente nas peladas de asfalto. Mais grandinho, fui um centro-médio de passes bastante precisos. Na meia-direita, tive a honra de jogar no primeiro time do Esparta F. C., do Colégio de Santo Antônio, de São João Del-Rei. Uma vez, jogando contra o Minas, dessa mesma cidade, fiz um goal de off-side tão bonito que o juiz depois me revelou não o ter anulado por essa mesma razão estética. Perdoe-me a imodéstia mas, quando o ponta esquerda jogou a bola na fogueira, e os zagueiros, desesperados, entraram em cima deste cronista, eu mergulhei incrível deslocando a bola para o lado oposto daquele em que, inutilmente, o goleiro procurava salvar a meta. É verdade que, cheio de mim mesmo, não fiz mais nada naquele jogo. Que me importa? Quando a garotada me rodeou no intervalo, eu me senti um verdadeiro Romeu (não o da Julieta, o do Fluminense).
Digo-lhe uma coisa: não fosse o futebol, colégio interno seria uma estúpida câmara de tortura. Digo-lhe mais, que devo ao futebol alguma resistência física e bastante do sentimento de lealdade.
Quanto ao fato de a senhora dizer que não compreende como se pode gostar de futebol, me desculpe mais uma vez, mas isso é besteira da sua parte. A senhora gosta de ossobuco? Pois tem gente que gosta até de miolos. A senhora gosta dos filmes coloridos de Esther Williams? Pois eu não gosto. A senhora gosta da poesia de Olegário Mariano? Pois eu gosto de Manuel Bandeira. E não me venha dizer que gosto não se discute para não incorrer em outro equívoco (ia escrevendo burrada mas considerei que isso seria vulgar e grosseiro).
Bem, resta finalmente a selvageria. A senhora acha selvageria um marido encontrar-se com a própria mulher? Pois, às vezes, essa mulher puxa um revólver da bolsa e mata o marido. Ainda que a senhora não o acredite, no futebol é a mesma coisa. Em si, ele não tem nada de brutal, mas não pode fugir a uma regra mais ampla: quando seres humanos se encontram, em uma mesa de pif-paf ou em uma praça esportiva, há sempre probabilidades de selvagerias.
De resto, minha senhora, acho mais selvagem o fato de um homem trabalhar uma semana inteira, em uma construção, em uma pedreira, em uma fábrica, em uma forja, em um navio, e no fim da semana não poder ir ao futebol, porque não conseguiu economizar para comprar um ingresso de 20 cruzeiros. Demagogia é a sua. Juro-lhe pela felicidade geral da nação que isso acontece, é que eu o lamento sinceramente.