Um dos capítulos necessários à sociologia do Rio de Janeiro seria um estudo dos “golpes” cariocas, que são expedientes matreiros ou violentos contra as dificuldades de viver aqui. O dono da boate dá o golpe do Balmoral, falsificando vilmente a bebida escocesa; o frequentador da boate dá o contragolpe do gargalo, enchendo de guaraná a garrafa de uísque que o garçom deixou sobre a mesa. O motorista do lotação dá o golpe das cinco pratas, alegando falta de troco; o passageiro lhe dá o contragolpe de comprar antes um jornal com uma nota de cinco, tornando a viagem mais amena e mais barata. João dá o golpe em José, tomando-lhe a mulher; José responde com o contragolpe de tomar a mulher de João. O fornecedor dá o golpe de não saber somar; o freguês dá o contragolpe de saber excelentemente as quatro operações. Há funcionários públicos que chegam a dar o golpe de usar o telefone da repartição para ligações interurbanas; mas há chefes de seções que usam do contragolpe do cadeado no telefone.

Seria um não acabar enumerá-los. Os golpes existem em todos os ramos: na polícia, nas casas de tolerância, na alfândega, no Fórum, na classe médica, na classe jurídica, no jornalismo, nas casas bancárias, nas praças de esporte, nas casas comerciais, nas concorrências abertas pelo Estado, nos restaurantes, nos cinemas, nas estradas de ferro, na inspetoria do trânsito, no rádio, nos lançamentos que dependem de publicidade, nas indústrias farmacêuticas, no ramo imobiliário, sem falar em instituições mais organizadas como a Cofap e a Cexim...

Mas um dos golpes mais pitorescos e mais lamentáveis é o de voltar para casa. Depois de trabalhar o dia inteiro, às cinco ou seis da tarde, o carioca tem de planejar a sua volta ao lar como se estivesse organizando um assalto a um banco. De que maneira irei hoje para casa? Que golpe vou dar hoje? O do bonde? Os, bondes estão cheios? Será que eu, andando até a praça Tiradentes, consigo um lotação? Quem sabe dá certo tomar um lotação até a Central e lá tomar outro de volta? Melhor talvez fosse a gente arranjar mais dois sujeitos, fazer uma “vaquinha”, e tomar um táxi. Mas será que se a gente ficar naquela esquina, consegue um táxi? Seria golpe talvez tomar um táxi até Copacabana e de lá tomar um lotação até o Leblon. Quem sabe hoje a fila do 114 está vazia? Ou vamos dar o golpe de ficar ali no Municipal, esperando que alguém desça de um lotação? O jeito talvez seria passar ali no bar para ver se a gente pega o carro do Manuel. Creio que o golpe é ir esperar em um cinema. Ou quem sabe passa por aqui algum conhecido com automóvel?

Às seis horas da tarde, parte da população do Rio está indestinada e triste e tonta. Sem falar na outra parte, que só tem um golpe: o de esperar nas filas ― das pessoas que não tem amigos que tenham automóveis, que não podem pegar lotação, que só andam de táxi em dia de enterro, que só têm de seu uma infinita e cansada paciência.

 Nota: Título atribuído por Paulo Mendes Campos à crônica identificada na base de dados da instituição como “Um dos capitulos necessários...”.

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