Dr. Hugo Salgado, cearense de nascimento, engenheiro de profissão, há muitos anos residente em Belo Horizonte, nos conta o diálogo mais insustentável e mais desagradável que já manteve em toda sua vida.
A cena se passa em estrada de rodagem do interior de Pernambuco. O dr. Hugo Salgado segue ao volante do seu carro pelo caminho deserto, quase ao cair da noite. À esquerda, ondula no vento um canavial novo, de um verde que dá gosto. E que dá vontade de chupar cana. O dr. Salgado para o automóvel, desce dele, empunha um facão afiado, afasta com cuidado o arame farpado da cerca e, com uma agilidade que não se adivinha em seu corpo grande e robusto, de Antônio Maria, já se colocou do outro lado.
Cortar e arrumar cana em um feixe bem amarrado é coisa que o bom nordestino faz com a mesma facilidade com que o bom carioca acompanha samba de breque, na caixa de fósforo.
Já com o molho de cana às costas, ele se prepara para cruzar a cerca novamente. Quando ouve uma voz forte e fria:
— Moço.
Ele se vira. Em uma macega, espingarda a tiracolo, posta-se um homem forte e frio.
— Às suas ordens, diz o dr. Salgado com um sorriso sem jeito.
— O que o senhor está fazendo aqui, moço?
— Eu ia passando de automóvel....
— Passando por onde, moço?
— Aí pela estrada.
— Então, o que o senhor está fazendo aqui, moço?
— O senhor me desculpa.
— Desculpar de quê, moço?
— Da cana que eu apanhei.
— Quem deu licença para o senhor apanhar cana aqui, moço?
— O senhor compreende. Eu estou no caminho de casa e meus meninos gostam muito de cana…
— Mas a cana é sua, moço?
— Não senhor.
— Então, moço, como é que o senhor entra na propriedade dos outros para roubar?
— Não é propriamente roubar.
— É roubar sim, moço.
— Quando eu entrei aqui estava até com a intenção de passar lá na sua casa para pagar.
— Mentira, moço. O senhor ia era botar a cana no automóvel e ia embora.
— Mas eu posso pagar. O senhor me diz quanto é que eu pago.
— Pagar o quê, moço?
— A cana.
— Que cana, moço?
— Que eu apanhei.
— Que o senhor roubou.
— Que eu roubei, vá lá. Quanto o senhor quer?
— E quem está pedindo o senhor para pagar a cana, moço?
— Então, está bem. Eu deixo a cana aqui e não se fala mais nisso.
O dr. Hugo Salgado depositou o feixe de cana no chão e foi saindo. Mas, antes de atingir a cerca, ouviu a voz fria e forte do homem frio e forte:
— Leva a cana, moço.