Sombra, dizia a Emília para tranquilizar não sei se o marquês de Rabicó ou o visconde, é ar preto.
Criança, não me tranquilizei: do escuro só podiam nascer os fantasmas, apagar a lâmpada era dar uma oportunidade aos duendes que habitavam o quarto, somente a luz conseguia tocar deste mundo os habitantes do outro. No ginásio, bom aluno de física, não me tranquilizei: a sombra era a dimensão negativa da terra, a nutrição dos tristes, o único espaço digno de uma pobre alma dramática de adolescente.
Adulto, estarei tranquilo? Será a sombra um corpo opaco interposto entre o observador e o corpo luminoso? Sim, positivamente a sombra é isto, mas a tranquilidade não nasce das definições. A qualquer hora, há muita sombra dentro de nós, sinal de que muitos corpos luminosos deixam de banhar-nos com sua luz, sinal de que nos faltam felicidades, de que muitos pequenos sóis necessários se interromperam em seu caminho até nossos olhos, estes que são, como diz um dos mais belos lugares-comuns, as janelas da alma.
Não perguntar o que um homem possui, mas o que lhe falta. Não indagar de seus sentimentos, mas saber o que ele deixou de sentir. Não importar com o que ele viveu, mas prestar atenção à vida que não chegou até ele, que se interrompeu de encontro às circunstâncias, ao egoísmo dos outros ou à sua própria culpa. Enquadrá-lo em sua constelação particular, conhecer as alegrias que o iluminam, saber se nasceu muito cedo para receber a luz da estrela que ainda não veio, ou se chegou ao mundo quando de há muito se extinguiu o astro que deveria iluminá-lo.
Chamamos de sombrios aos homens que não recebem luz. Ele passa sob o sol, sob a lua, sob as estrelas, passa através das iluminações múltiplas da cidade, passa por mulheres amoráveis, passa pelas grandes criações humanas, passa, enfim, sob todos os focos luminosos da terra, e não recebe a luz. Este homem é um pobre.
Entre ele e a luz se interpõe um corpo opaco cujo nome é tão prosaico e tão duro que nem sempre se pode enunciar.
Sombra é ar preto, dizia Emília. Ao meio-dia, idade em que estou, a nossa sombra se abraça a nós e se confunde conosco. A vida e a morte começam a habitar o mesmo corpo. O sol fulgura sobre nossa cabeça; o fim se aproxima de nossos pés, ponto final de nosso domínio, ponto de partida para a solidão. Continuamos, então, a caminhar, e a sombra cresce de nossos pés, à nossa frente, enquanto o sol, perdendo-se atrás, resplandece inutilmente sobre as nossas costas opacas. Até que, um dia, de nós existirá apenas a sombra, mais um pouco de sombra para os que chegaram depois. O homem, disse um que se foi há vinte e cinco séculos, é o sonho de uma sombra.
Toda essa literatura inadequada aconteceu quando, hoje, presenciamos a menina descobrindo sua própria sombra. Ela parava de espanto e olhava, tentava pegar a sombra, andava mais um pouco, virava de repente para verificar se a coisa ainda a seguia. E indo e vindo, seguindo e virando-se, gesticulando, tropeçando, murmurando palavras incompreensíveis, implorando a seu pai uma explicação impossível, a menina começou no dia de hoje a dançar o balé que vai chamar-se (a sua) vida.