13 mar 1954

Se ainda não relatei...

Periódico
Diário Carioca
coluna: Primeiro Plano. Publicada também em: livro O cego de Ipanema, de 1960, com o título Aparição, com alterações.

Se ainda não relatei esse extraordinário acontecimento é porque eu mesmo ainda não parei de pasmar-me com o que vi.

Foi há uns 40 dias, em Copacabana, sábado, por volta de uma hora da tarde. Vínhamos pela praia, na direção do Leme, rodando devagar. Além do dono do carro, cujo nome menciono para que não me deixe mentir — Otto Lara Rezende — estávamos eu e Marco Aurélio Moura Mattos, professor-assistente de técnica de orçamento da Fundação Getúlio Vargas.

A manhã era perfeita entre as mais perfeitas que o Senhor reservou para Copacabana. Manhã dessas em que me vem sempre a vontade de ser abastado sitiante em Ribeirão Preto ou Alegrete, e de estar no Rio para umas férias longas em um dos hotéis envidraçados da avenida Atlântica. Manhã amorável que nos livra do ridículo de viver em uma cidade sem água, sem pão e sem transporte. A viração marinha corrigia o ardor de um sol lúcido.

Foi por isso mesmo que arrepiáramos o caminho de casa, na altura do Posto 6 e, sem que o percebêssemos, dávamos uma volta.

O professor de técnica de orçamento nos contava história de um pássaro preto que caiu no alçapão, em Itaúna, cantou, cantou, cantou e morreu.

“Acho pássaro preto uma coisa formidável” — ele acabava de dizer isso, quando uma parada brusca sacudiu-nos com força dentro do automóvel. Olhei o motorista para saber o que se passava, e surpreendi no rosto de meu amigo de muitos anos uma máscara que eu não conhecia. E como não me sinto apto para descrever a expressão de seu rosto, passo adiante. Ele disse: “estou vendo”. Assim, sem reticências, como um cego que recuperasse a vista. Olhamos também para onde os seus olhos fugiam, e também vimos. Nós também vimos a aparição candente caminhando em direção contrária à nossa. Três pares de olhos ficaram vendo.

Devia ter dezesseis para dezessete anos. Alta, mas não tão alta quanto uma americana. Loura, mas não tão loura quanto uma escocesa; bela, mas muito mais bela do que Michele Morgan.

O maiô, de duas peças, era cor de laranja. A pele de um dourado irrepreensível talvez indicasse a mistura de uma raça nórdica com uma raça morena. Os sapatos altos a faziam mais alta e, contraditoriamente, íntima e hierática. As formas, essas eram coisa de Deus. E como não é possível existir hoje em dia uma criatura tão bela assim sem que os meios modernos de publicidade espalhem pelos quatro cantos do mundo a sua imagem, era de supor-se que, menina-e-moça na noite anterior, havia desabrochado mulher naquela manhã, e ainda não se apercebera disso quando saíra para a praia como todos os dias. Porque a displicência com que conduzia o seu corpo pelo passeio da praia era absurda, e a fazia mais forte e real.

Mas nós percebíamos, nós víamos o aparecimento. E aquele que conduzia o carro fez com ele uma curva e começou a seguir a estrela. E a estrela caminhava ao lado de uma senhora de certa idade, possivelmente sua avó, e de uma criança, certamente seu irmão. Só então notamos que as rainhas andam sempre seguidas de um séquito. Não apenas nós a acompanhávamos, humildes, deslumbrados e rendidos, mas outros automóveis deslizavam em seu encalço, tudo dentro de um respeito que se parece ao medo, tudo em silêncio, não fossem os alaúdes daqueles que forçavam a passagem para conseguir um lugar melhor perto dela. E os que não dispunham de viaturas marchavam a pé, à frente, à retaguarda, à direita e a uma certa distância, na calçada junto aos edifícios, à esquerda, pela areia da praia.

O cortejo foi aumentando de maneira fabulosamente rápida. Sim, um acontecimento de fábula. Ela caminhava entre a velha e o menino, olhava para os lados e para trás com um certo temor, mas segura de ser intangível. Janelas de apartamentos começaram a abrir-se, faces consumidas de aborrecimento se iluminavam de repente.

No Posto 6, a situação estava insustentável. Já éramos legião. A velha, assustada, passou a puxá-la pelo braço. Dirigiram-se ao clube Marimbás, onde, depois de falarem a um cavalheiro, refugiaram-se. Mas quando ela apareceu lá em cima, na sacada, e desprezando os seus súditos, foi contemplar os longes do mar, alguém começou a bater palmas. E uma ovação formidável se ouviu em Copacabana. E Copacabana que está acostumada a ver mulheres mais belas, ficou maravilhada.

paulo-mendes-campos
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