Periódico
Diário Carioca
coluna: Semana Literária. Publicada também no livro De um caderno cinzento, de 2015, pp.135-139

1. Segundo Lacordaire, antes da palavra, o homem se comunicava com a companheira por meio de uma radiação — raio adâmico, — coisa que se perdeu com a queda. Comenta Alfonso Reyes que aquela capacidade de transmissão imediata do pensamento foi atrofiada pelo uso da linguagem, restando hoje ao homem como telepatia. Não costumam os namorados dizer que o silêncio lhes exprime os sentimentos em um tom mais eloquente do que as palavras?

2. Uma das muralhas entre as classes é a linguagem. Ao nosso operário não lhes resta senão procurar fugir ao arrazoado pomposo de um patrão ou de uma autoridade burocrática, vendo entre ele e os seus direitos um mundo intransponível de termos complicados. Em outras palavras, a liberdade de pensamento é útil apenas para as pessoas que sabem exprimi-lo.

3. Sobre o antropomorfismo poético: é realmente prodigioso que em um poema comunguem vários homens, sem abdicação de personalidade, cada um sentindo e compreendendo a seu modo uma única ordem de palavras harmoniosas.

4. O monólogo é ainda uma forma de discussão. Não existe solilóquio puro. Quando penso: “isto é uma árvore” estou de um certo modo discutindo, respondendo a uma provocação causada por uma coisa que eu chamo de árvore. A poesia é o desenvolvimento contínuo dessas provocações. Ela é sempre interjetiva, porque a suprema originalidade continua sendo a existência do homem e as coisas do mundo.

5. “In vino veritas”. Jamais pude comprovar a autenticidade disto. Nas muitas vezes que os meus amigos se excederam, observei o contrário: mascarados de confidentes ou de desabusados, mentiam com mais habilidade do que nunca. Mentiam de um modo artístico, se assim posso dizer. Lembro-me de Remy de Gourmont que identificava a linguagem com a mentira e para quem o artista é aquele que mente de um modo superior, acima dos outros homens. 

6. Reflexão de um tímido: é preciso aprender o inglês para ficar calado sem humilhação em uma roda em que se fale esta língua.

7. Somente agora soube que ele entregou a alma a Deus, há alguns meses, em uma cidade do Sul a mesma pela qual aportara a este mundo transitório. Chamava-se Lourenço de Figueiredo e era alto e enfermiço. Nós, entretanto, lhe pespegávamos ao nome de batismo um “o Magnífico”, um pouco por galhofa, um pouco pela ternura que se tem aos espíritos desmantelados, e talvez também um bocado por que lhe restasse a possibilidade de ser verdadeiramente magnífico. De insofismavelmente magnífico, aliás, tinha o nariz, um estupendo nariz, grego pela perfeição de suas linhas, mas de um helenismo arrependido tardiamente resolvido a ser arábico. Entre o paganismo ático e o misticismo muçulmano, brilhava o nariz de Lourenço, a que nem mesmo faltava o fremir inquieto das narinas mediterrâneas. Era um nariz misto, mas perfeito. Por trás deste fabuloso apêndice nasal, sentinela avançado de sua personalidade, a figura do magnífico se não era desprezível não chegava a espantar. O que espantava em Lourenço era a insolência, a petulância. Ele chegara à nossa roda da mesma maneira como iria sair algum tempo depois, isto é, daquele modo misterioso que sempre agrava as três perguntas da eterna perplexidade humana: Quem és tu? De onde vens? Para onde vais?

8. Neste mundo técnico e científico, confuso e pretencioso, quando. E, me disse que o único problema era o da salvação da alma, estava seguramente iluminado. Somente o gênio da infância é capaz de igual simplicidade.

9. Regra: experimentar as ideias de cabeça para baixo. Algumas ficam na posição correta. Outra regra: fazer perguntas indiscretas, e não há mais indiscretas do que aquelas que pedem a definição das coisas aparentemente sabidas. Que é poesia? Que é o amor? Que é a consciência de si mesmo? Etc. etc.

10. Certos momentos em que se torna custoso despedir-se das pessoas ainda que elas não nos sejam muito caras. Num romance inglês há uma personagem, uma senhora milionária que fazia todas as artes no sentido de impedir que os seus hóspedes se recolhessem ao leito. Ela era movida a esse gesto pela esperança insidiosa de que, de uma hora para outra uma daquelas pessoas poderia dizer-lhe uma palavra definitiva, a palavra — chave do seu destino. Também Marcel Proust sofreu desse medo específico. Vinha de uma festa, levava um amigo, ficava largos momentos a conversar diante da casa deste, seguia com ele até a própria casa, conversava mais um pouco, retornava...

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Joaquim, uma revista paranaense que vem vencendo, apresenta-nos mais um número, tão cuidado como os anteriores.

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Mecânica do azul, o livro de estreia do poeta Wilson Figueiredo, apresentado aos leitores com um estudo consciencioso de Tristão de Athayde vem sendo reconhecido como uma das novas afirmações da poesia entre os moços.

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Depois da grande iniciativa de A comédia humana, a Livraria do Globo nos promete traduzir por meio de Mario Quintana a obra cíclica de Marcel Proust cuja importância em nossa época, aliás, é frequentemente comparada à de Balzac em seu tempo.

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Flaubert volta de seu túmulo a irritar os moralistas, segundo se deduz das palavras proferidas pela presidência do Conselho italiano, ao qualificar de “obscena e pornográfica” a grande obra do autor de Madame Bovary.

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Lucy Teixeira, uma excepcional escritora maranhense tem preparado o seu volume de estreia, uma coleção de contos que deverá proporcionar a sua autora o renome de que até agora ela procurou esquivar-se.

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De Jacques do Prado Brandão é o livro de poesia há muito esperado e agora prometido para breve: Vocabulário noturno.

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Para remessa de livros: Av. Copacabana 787 — Ap. 100.

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