Não sei, meu amigo, mas eu gostaria que este bilhete fosse classicamente endereçado a um jovem poeta.... Se, entretanto, eu me lembro da sua atividade partidária na última vez que o vi, você colocando cartazes, redigindo manifestos, aprazando encontros com gente importante, telefonando como um desesperado, a dúvida paralisa a minha mão: político ou poeta? Jovem político ou jovem poeta? Diante da indecisão, puxo no fundo do poço a imagem afogueada de um jovem poeta, melhor, de um menino poeta. Mas o menino é pouco. As neves de antanho cobriram a sua face iluminada pelas eternas perguntas do alumbramento e do medo de um homem. Hoje você é um jovem de resposta e é ainda de resposta o carão gordo com que prega agora a salvação da humanidade: político; jogo no político.

Morreu o poeta? Será precário dizê-lo. Nunca saberemos ao certo se as coisas morrem, e as afeições e os ressentimentos, com a força e a gratuidade aparente dos vegetais, costumam brotar quando os declaramos ressequidos e mortos.

Talvez não haja desaparecido o poeta. Talvez tenha apenas se ocultado no recesso das águas fundas, intimidado de certo com a implacabilidade do político, com o ar desbravador do político, com a rosa metálica que o político prendeu à lapela. Lembro-me que você mesmo dizia há pouco tempo pertencer ao grupo daqueles que acreditam na perenidade da criança. Vivendo a criança, viverá o poeta. 

Aliás, os tempos estão com o político. Quanto mais se afaste o poeta (ou a criança), maior será o número de louros sobre a sua cabeça. E haverá muitas palmas nos seus caminhos e muitas taças se erguerão à altura de sua face, de seus olhos, gulosos da glória, quiçá um pouco turvos pela melancolia inoportuna de um desencanto inesperado. Você vencerá. Algumas vezes eu o escutei e o contemplei a falar ao sacrossanto povo. A voz forte e vibrante, o entusiasmo que se irradia de seus braços, o torneado reluzente de suas palavras, estão a desvendar para você os triunfos da vida pública. Por outro lado, sobram-lhe amáveis dons de espírito para impedi-lo de ser um demagogo vulgar. No mínimo, será um demagogo invulgar, dono de uma retórica tão vigorosa que você mesmo será envolvido na flama suasória de seus discursos.

A esta altura, porém, você já tem o direito de perguntar-me irritado por que diabo estou eu a escrever-lhe uma carta como esta. E eu lhe respondo que é por amizade, que esta missiva é essencialmente um cantar de amigo. Sucede que a campanha eleitoral dos últimos dias deixou-me a ruminar uma meia dúzia de considerações fora de moda e, entre elas, uma muito relacionada a você aguilhoou-me de um modo mais insistente. Eu estive indagando de mim até que ponto o artista (o poeta, a criança) deve meter-se na torrente salvadora do mundo. E não soube precisar os limites. Entretanto, eu, que me sinto cada vez mais político e menos individualista, fico achando que a tarefa fundamental do artista é salvar a própria arte. Você rirá de mim, de eu ter dito que me sinto mais político... E rirá com razão, se não me apressar em explicar-lhe que entendo por política a universalização das ideias e dos sentimentos, ou ainda, se você quiser, eu confundo a verdadeira política com a cultura, com a própria procura da unidade do mundo e da expressão da natureza humana. Cairíamos em explanações um tanto árduas, se eu já não confiasse, não obstante os esquemas que viciam agora o seu pensamento, na sua intuição, outrora tão fabulosa, capaz de manusear meu pensamento melhor do que eu mesmo o poderia fazer. Em todo caso, eu quero dizer que os sapateiros devem fazer sapatos, o contador deve fazer escritas, o alfarrabista deve meter seu nariz paciente na poeira dos alfarrábios e que, enfim, o político deve fazer política. Mas não apenas isto. A universalização implica também que o sapateiro confeccione sapatos segundo um critério estatístico razoável, em que haja uma grande probabilidade dos pés caberem dentro daqueles; o contador deve operar nos seus cadernos segundo as noções universais da aritmética; o alfarrabista não deve ler os seus alfarrábios com lentes marxistas ou liberais-democráticas, mas com os olhos honestos de um genuíno pesquisador: por último, o político deve procurar governar do modo mais razoável a fim de permitir que o sapateiro, o contador e o alfarrabista possam ser felizes e livres dentro das atividades que exercem.

De propósito, esqueci o poeta. Ora, francamente, eu não vejo razões para exigir-se do escritor uma ação política diversa da de um sapateiro. Se o interesse de um estado ou de uma ideologia é que o sapateiro faça sapatos decentes, contribuindo assim para a satisfação do povo, eu não posso entender porque o escritor deva ser político e não um escritor, da maneira que ele bem entender. E acho perfeitamente insensato o argumento de que o escritor, pelos seus dons de inteligência, compreende melhor as coisas, cabendo, assim, a ele uma responsabilidade maior na felicidade coletiva. Conversa! As “coisas” são mais complicadas do que tentam fazer acreditar. Sobretudo nesta questão de inteligência, poderíamos perder horas e horas a perguntar e a responder e tirar das respostas novas perguntas, durante muito tempo, sem que a probabilidade de uma conclusão final fosse muito grande. Lembro apenas de passagem que uma certa incompreensão da vida é também uma característica fundamental da inteligência, e que sobre tal coisa um filósofo moderno edificou toda uma filosofia.

Bem, a carta já vai um pouco alta e eu vejo agora que o assunto é muito longo. Foi uma leviandade minha meter-me por ele. Nesta matéria, porém, eu sou como Pilatos: o que escrevi está escrito. Saiba, entretanto, de uma vez para sempre, que eu lamento muito o fato de você ter trocado a poesia pela espécie de política que está fazendo e em que você está atolado. E isto sem discutir o mérito ideológico, que absolutamente não interessa no caso aqui presente. Eu, que fazendo poesia não vou além de umas cançõezinhas pobres, embora de um certo bom gosto, chego a irritar-me diante da riqueza poética que você trouxe para a vida e que trocou burramente por qualquer coisa que não é você, em que você, para os amigos que o conhecem, está falso e relambório. Além disso, seus últimos poemas estavam ruins, danado de ruins mesmo. E terminando, ponho aqui o meu abraço.

paulo-mendes-campos
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