É o tipo da pessoa que fala em corda na casa de enforcado. Em linguagem psicanalítica, Wilson Figueiredo carece de “censor”. A gente está em uma roda e de repente ele sai com uma enormidade, verdadeira ou suposta, a respeito de um dos presentes ou a seu próprio respeito.

Quando chegou a Belo Horizonte, ― nasceu esse poeta numa cidade vaga do Espirito Santo ― pareceu-me um sambista. Era Wilson de Figueiredo um virtuose da caixa de fósforos e cultivava um bigode cheio de intenções maliciosas. És sambista, sambista e nada mais, eis o que pensei diante daquele rapazinho. Tímido, mas de uma timidez anarquista, Wilson era capaz de dar um berro numa recepção da Sociedade Brasileira de Cultura Inglesa.

Tinha duas manias: o samba e os “complexos”. Sambas, ele os conhecia e amava. Em matéria de “complexos” foi um criador, independente de Freud: descobria-os nas pessoas, nas figuras da história, nas plantas, nos animais e até nos seres inanimados. O complexo, para Wilson de Figueiredo, é a substancia do universo e preceito socrático do “conhece-te a ti mesmo”, ele o particulariza num “conhece teus complexos”. Noel Rosa raté, como sambista, nunca mereceu de minha parte grande respeito, embora brilhasse em Minas, terra infensa à batucada.

Em prosa, escreveu alguns artigos que lhe valeram a reputação de “kantiano”, por não ter sido compreendido por ninguém.

No mais, Wilson de Figueiredo permaneceu até hoje o aluno de colégio interno. Não sei de pessoa que menos tenha se libertado da fatalidade de ter sido aluno interno. Desde a escova de dente no bolso até o seu ar constante de quem “está de saída”, e breve retornará à melancolia das horas de estudo, Wilson de Figueiredo continua preso a seu passado de ginasiano, dobrado pela nostalgia de casa, mas perturbado pela palpitação graciosa das moças em flor.

Em uma palavra, visto superficialmente, Wilson de Figueiredo tem um ar amolecado. É mentira, porém. O rapaz é sério e o seu livro de estreia ― Mecânica do azul ― é uma demonstração do cuidado que ele põe na sua atividade poética. Com efeito, Mecânica do azul é mais um livro de poemas em que podemos sentir uma “reflexão”, a vontade manifesta de traçar-se uma linha criadora, uma arte de exprimir versos.

Qual é esta linha? Defini-la é impossível, mas podemos caracterizá-la. Quando olhamos o “modernismo” brasileiro, vemos que ele não teve força suficiente para desdobrar-se em outros movimentos poéticos. Talvez porque entre nós a quebra dos métodos poéticos tradicionais haja despertado uma reação muita intensa, ou por outro motivo qualquer, o nosso modernismo ficou também relativamente convencional, circunscrito ao uso de certas liberdades, mais ou menos padronizado em certa maneira de dizer, de poetizar. Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Murilo Mendes, os nomes de proa dos que sustentaram a renovação, ainda que bastante pessoais, sempre estiveram reunidos sob o título comum de “modernistas”. Aperfeiçoaram-se, mas ficaram presos à série de “reivindicações” apresentadas em 1922. E isto se explica: durante muito tempo, não houve no Brasil ambiente para outras renovações. A custosa experiência modernista esgotara nossa vida literária. A custo, os poetas de 22 criaram um público, e a fim de não o perder renunciaram a muitas possibilidades. Na França, distinguimos diversos movimentos desde a primeira guerra até nós; no Brasil, só temos realmente um. Há nos livros daqueles quatro poetas acima citados alguns poemas que poderiam dar novas direções à poesia brasileira, porém, seus autores ficaram na experiência. A pequena repercussão dessas experiências era de desanimar. E foi apenas quando apareceu a poesia poderosa de Augusto Frederico Schmidt que vimos surgir na literatura nacional uma corrente poética libertada dos vícios e das qualidades “modernistas”, uma corrente nova. A meu ver, ainda não soubemos estimar em sua justa medida o que a poesia do Canto da noite significa para a nossa literatura. Acredito que ela não apenas tenha influenciado os jovens, como também tenha dado aos poetas da própria geração de Augusto Frederico Schmidt a primeira certeza de que havia possibilidade para “outras poesias”. Apareceu Vinicius de Moraes, apareceu Cecília Meireles, apareceu Lúcio Cardoso, apareceram outros. Através desses é que compreenderemos a poesia da nova geração, nem sempre por influência direta, às vezes somente pelo inconformismo que representavam.

Wilson de Figueiredo (e tantos outros) não reage contra o modernismo, procura completá-lo a seu modo. Costuma-se dizer que os poetas moços não trazem nada de novo. É preciso um pouco mais de calma em afirmações assim. A verdade é que os “modernistas” não disseram igualmente “tudo que havia de novo”, isto é, muitas formas de expressão não chegaram a ser realizadas por eles, embora possuíssem seus cultores em literaturas estrangeiras. Além disso, que se há de fazer (!): duas poesias de excelente qualidade como a de Cecília Meireles e a de Lúcio Cardoso, embora de certo modo respeitadas, ainda não obtiveram toda a compressão que merecem.

Wilson de Figueiredo, por exemplo, se em Mecânica do azul nos dá uma poesia ainda bastante incerta quanto ao seu resultado (trata-se da estreia de um moço), descobrimos a vontade que o poeta tem de organizar sua expressão, inventar o mundo a seu modo. E o material de que dispõe Wilson de Figueiredo é muito bom (uma sensibilidade verbal muito sua), faltando-lhe discipliná-lo com o exercício obstinado de suas qualidades. Há uma certa “decomposição” nos poemas de Mecânica do azul, uma desordem propositada que vem a ser a constante da técnica de Wilson de Figueiredo. O poeta não compõe os elementos com que faz esses poemas, pelo contrário, procura decompor um pensamento, um estado de espírito, uma situação emotiva. Nesta libertinagem técnica residem as fraquezas e os encantamentos de Mecânica do azul. Numa espécie de metafisica às avessas, Wilson de Figueiredo parte do espírito para a matéria. Sua poesia está cheia de “coisas”, não havendo nela, porém, o “cotidianismo” dos objetos familiares e sim uma náusea infinita do que é familiar:

Um baile continua em meu bairro. 
Na cama olho para o teto 
que não estala, como na infância. 
A roupa dependurada 
e o espelho sem confidência,

Mesa forrada de jornal 
com tubos vazios de remédio, 
percutindo a canção da lua de agosto.

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