O apartamento era desses de que a gente não pode dizer com certeza se tem ou não empregada. Algumas tarefas caseiras ficavam a cargo de uma terrível adolescente, escurinha. Chamava-se Jandira.
Jandira quebrava tudo, mexia com o vizinho, namorava o caixeiro, telefonava, ria-se, corria pela casa, levava sustos. A patroa, de muito boa índole, gritava com ela: “Jandira, diabinha!”.
Eu alugava um quarto neste apartamento. Um dia, a dona da casa bateu-me à porta, entregando-me um livro: “Imagine só o senhor que a diabinha da Jandira tirou esse livro escondido e estava a copiar poesias. Ora veja só! Vê se aquele pedaço de gente pode entender de poesia.”
Meu espanto começou quando vi o título do livro: Poesias, de Carlos Drummond de Andrade. Quis imediatamente ver o que a menina tinha copiado.
Num caderno de capa azul, desses que têm um passarinho empoleirado na letra C, adquirido decerto com a finalidade única da arte, Jandira tinha copiado uma porção de poemas de Alguma poesia e de Brejo das almas.
Senti em seu trabalho a preocupação de antologia. Tinha preferido os poemas de amor. Lembrei-me dos eternos sonetos encontrados nos aveludados álbuns de meninas ricas e achei graça. Jandira possuía mais senso poético. O que me admirava mais, no entanto, era o segredo da poesia a visitar e comover um espírito simples, não prevenido, como queria André Gide. Jandira não tinha parti pris contra a poesia sem rima, de métrica irregular. Amor, a quanto me obrigas era mais natural e verdadeiro do que todas as chaves de ouro que cantam a dor de Menelau.
"E o amor sempre nessa toada:
Briga, perdoa, perdoa, briga"
Nada poderia exprimir mais diretamente para Jandira as intermitências de seu coração. Acaso houvesse ela folheado outros livros de poesia, como suponho, teria notado logo que Olavo Bilac, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, eram todos eles mais complicados, mais difíceis. A culturinha de Jandira só podia ser curta para qualquer poesia que não fosse um despojamento, uma simplificação.
Fiz ver à dona da casa que era mais conveniente deixar o livro com Jandira. Eu já era um burro velho. Tanta gente sem sensibilidade tem levado os meus livros que não tinha importância perder mais um para uma alma que me desse boas esperanças.
No fim de alguns dias, entretanto, a dona da casa achou que aquilo era um desaforo e me devolveu o livro.
E depois de mais uns dias, perdeu a paciência e mandou a Jandira embora. E a diabinha carregou-me A rosa do povo do poeta hermético.