Nesta grande desgraça, para o Brasil e para os seus amigos, que foi a morte do presidente Castello Branco, sofri uma dor a mais, uma dor bem funda: entre os passageiros do fatal avião estava Alba Frota, a amiga de infância, de mocidade e já agora de velhice, a companheira de colégio desde o primeiro ao último ano normal, a colaboradora, a presença querida e fiel: só uma palavra pode dizer o que Alba foi para mim: a irmã.

Alma mais gentil jamais Deus pôs neste mundo. Tinha o instinto da amizade, o dom precioso da lealdade e da fidelidade. Nunca faltou a um amigo, aliás, creio que nunca faltou a ninguém − amigo, conhecido ou até inimigo. Inimigo não dela, mas de algum de nós, que ela cultivava escondido da gente, até que o transformasse em amigo também.

Ah, Albinha, que posso dizer a você, nesta hora? Mas sei que lhe devo este testemunho, o que faço ainda chorando. Mas você estranharia a falta de palavras escritas, palavras de jornal, comemorando a partida. Quantas vezes não me advertiu − "Você está devendo uma crônica a fulano que morreu!" − até me telegrafava, exigindo. Sem ser ela própria uma escritora, tinha por toda expressão literária uma devoção quase religiosa. Eu lhe dizia brincando que papel impresso era para ela como palha benta − e era verdade. Mormente papel impresso com texto de um dos seus inúmeros amigos escritores. E sem ser uma criadora, como disse, fez mais pelas letras e pelas artes de que muita gente de nome celebrado. O apoio que dava aos artistas pobres, obscuros, na fase difícil do assalto à fama. Quanto pintor que hoje tem nome, não lhe deve os primeiros estímulos, as palavras de confiança, a apresentação a um patrono, a venda de um quadro em hora de aperto. Quanto escritor ou poeta, em crise de desânimo, não voltou mais otimista à sua tarefa, depois de uma boa conversa, de um cafezinho, de uma discussão com a "Albinha".

A velha casa da Aldeota, que os amigos chamavam brincando a "Mansão da donzela", era um refúgio para muita alma perdida, para muito coração atormentado. Era um pequeno museu − paredes, armários, vitrinas e prateleiras transbordando de quadros, esculturas, santos, peças folclóricas, objetos antigos, bricabraque, que acumulara ao longo da vida − presentes de artistas amigos, lembranças de viagem. Que era outra paixão dela, viajar. Hoje não sei se terei coragem de entrar mais naquela casa, ver tudo aquilo tão marcado por ela − e o papelório, o meu papelório todo, de que ela se fizera depositária, e colecionava e defendia com feroz cuidado!

Quando chegou aqui em casa, no grupo de amigos, foi uma alegria, uma surpresa. De longe, antes de descer do carro, já gritava coisas atrapalhadas, enquanto a gente corria para a abraçar. Passou a última noite de vida em minha casa − inaugurando um quarto novo onde ainda não dormira ninguém. Eu vim acomodá-la, dei-lhe cigarro e cinzeiro, ajeitei a luz, exigi que pusesse um cobertor, ameaçando-a com o frio da madrugada.

Acordei ouvindo a sua voz na sala − madrugadora e alvoroçada, como era sempre quando tinha que viajar. Enquanto lhe servia o café ainda insisti em que não fosse de avião, seguisse para Fortaleza no trolemotor, que voltava vazio. Ela riu, disse que não, que no avião chegaria mais depressa.

Chegou mais depressa, sim, Albinha. Chegou mais depressa no céu, em que você acreditava com fé humilde. Afinal, lá mesmo é que é o seu lugar.

rachel-de-queiroz
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